Era quase meio-dia quando Rafael foi até a geladeira procurar algum doce. De canto de olho, ele procurou observar onde estava sua mãe, Suelena, para ter certeza de que ela não estaria percebendo sua atitude matreira.
Afinal, Rafael sabia que a mãe não permitia comer “bobagens” no horário da principal refeição do dia. Diferente do pai, Belarmino, que não se incomodava em ver o filho comendo um doce ou bolacha, ao invés de arroz, feijão e carne.
Suelena e o filho Rafael | Foto: Arquivo pessoal
Suelena conta ainda que Rafael também sabe quando a mãe vai se aborrecer com algo que ele fez de errado, por isso ele se antecipa e corre para dar um abraço forte na mãe e a beija várias vezes.
Rafael a irmã Mariana | Foto: Arquivo pessoal
A história de Rafael é uma das muitas que envolvem mães e pais que tem filhos autistas. O autismo é um problema psiquiátrico que costuma ser identificado na infância, entre 1 e 3 anos, embora os sinais iniciais às vezes apareçam já nos primeiros meses de vida. O distúrbio afeta a comunicação e capacidade de aprendizado e adaptação da criança.
Rafael na equinoterapia | Foto: Arquivo pessoal
Rafael foi para a creche com 5 meses onde os educadores perceberam que ele tinha um comportamento diferente em relação aos coleguinhas. Quando ele começou a andar, os pais constataram que havia a necessidade de uma atenção especial.
Rafael então foi colocado em uma clínica com terapia intensiva para somente depois retornar à escola. O menino não interagia com ninguém, só com a mãe. Ele também ignorava o pai e a irmã, e passava o tempo inteiro assistindo desenho.
Suelena comemorando os 9 anos de Rafael | Foto: Arquivo pessoal
O tratamento foi excelente e proveitoso e surpreendeu. Suelena conta que logo nos primeiros meses de terapia, Rafael passou a interagir do jeito dele, respondendo comandos, reconhecendo pessoas, e conversando à sua maneira.
“ A evolução aconteceu no tempo dele, nada foi forçado, deixamos que ele fosse apreendendo e aceitando as coisas da maneira que entedia ser a certa”, explica a mãe. Suelena relata, por exemplo, que só agora, aos 9 anos de idade, é que ela conseguiu tirar definitivamente as fraldas do filho.
Rafael e o pai Belarmino | Foto: Arquivo pessoal
Outro trabalho lento, mas que tem demonstrado bastante sucesso é a organização de palavras. Rafael já consegue falar, no entanto sua comunicação ainda é monossilábica. A mãe entende que isso também faz parte do processo e sabe que na hora certa o filho conseguirá interagir com família, professores e colegas com muita naturalidade.
Constrangimento
Gustavo, 10 anos, estava radiante. Uniforme, tênis e cadernos novos, reencontro com coleguinhas. Era a primeira vez que pisava na escola após suspensão das atividades por conta da pandemia de coronavírus.
O menino já tinha entrado na sala de aula quando uma professora chegou até ele e pediu para que lhe acompanhasse. A criança foi levada para o pátio e avisada que sua mãe estava para chegar, pois ele não poderia ficar na escola e teria que ir embora.
Gustavo e a irmã Melissa | Foto: Arquivo pessoal
O colégio estava sem gente capacitada para atender um garoto especial, autista, como é o caso de Gustavo. A direção informou que o Estado teria mudado de função o cuidador concursado que já atendia o menino há bastante tempo.
Revoltada, a mãe denunciou o problema nas redes sociais e o assunto repercutiu em todo o Brasil. Embora resguardada pela Lei Federal 12.764 que diz que:
“Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista […] terá direito a acompanhante especializado”, Mabel Colares, mãe do Gustavo, foi à luta e acabou descobrindo um atendimento ainda melhor para o filho.
Gustavo está estudando há um mês na Escola Municipal Antônio Ferreira onde dois profissionais de saúde estão lhe acompanhando. O garoto já está fazendo fonoaudiologia, terapia ocupacional e também participa de sessões com psicólogo. A mãe disse que ficou até surpresa com o entrosamento rápido dele junto aos coleguinhas.
Descoberta
Mabel de Almeida Colares conta que o filho Gustavo começou a caminhar com 10 meses. Ele teve um desenvolvimento normal até 1 ano e 5 meses quando já falava algumas palavras. De repente, o menino começou a regredir e perder a capacidade de desenvolvimento.
A situação coincidiu com o nascimento da irmã Melissa. Com 1 ano e 7 meses, Gustavo foi levado para consultar com um neurologista onde foi levantada a suspeita do espectro autista. Ao avaliar um exame da criança, um médico informou que mesmo em sono induzido o cérebro de Gustavo não descansava. Era o sinal de que havia algo errado.
Gustavo e a irmã Melissa | Foto: Arquivo pessoal
A partir daí Gustavo começou a se tratar com fonoaudióloga e fazer terapia ocupacional. Ele passou por várias creches sem conseguir se adaptar a nenhuma.
Os professores se queixavam do comportamento agitado e agressivo. Mabel diz que recebeu inúmeras reclamações quanto a isso.
Somente aos quatro anos de idade é que um laudo confirmou o diagnóstico de autismo. A mãe conta que ficou desnorteada, mesmo sabendo que havia a suspeita quanto à possibilidade do problema. Quando foi para a primeira série, os professores já sabiam que Gustavo precisava de atenção diferenciada.
Gustavo e a mãe Mabel | Foto: Arquivo pessoal
Mabel relata que a adaptação foi lenta e que a permanência do menino em sala de aula só foi possível graças ao apoio de uma cuidadora. A profissional dava atenção especial e tinha muita paciência para lidar com as crises que costumavam afetar o garoto.
Ele ficou estudando em um colégio filantrópico até a chegada da pandemia. Quando houve o retorno das aulas, a mãe de Gustavo recebeu a notícia de que o Estado tinha mudado de função a cuidadora e não havia como tê-lo em aula sem alguém que pudesse acompanhá-lo pontualmente.
Comportamento
Mabel diz que o filho faz mais de um tratamento e segue uma medicação rigorosa. Suas crises diminuíram consideravelmente e ele leva uma vida tranquila. Em casa, não recebe tratamento diferenciado em relação à irmã. "Eu e meu marido tratamos os dois de forma igual, não queremos que nenhum deles se sinta privilegiado ou inferior ao outro”, enfatiza Mabel.
Gustavo e a irmã na escola | Foto: Arquivo pessoal
Alegre e serelepe como qualquer criança aos 10 anos, Gustavo também apronta quando tem chance. A mãe diz que o passeio no shopping é o que mais empolga o garoto e que mulher bonita, e acompanhada, tem atenção especial dele.
“Quando vê uma mulher bonita com namorado ou marido, o Gu corre para abraçá-la. As mulheres se assustam no início, mas depois dão atenção e carinho pra ele. Na hora que o parceiro da mulher também tenta um agrado, ele diz para não tocar nele, somente a mulher pode”, explica Mabel às gargalhadas.
Gustavo na sala de aula | Foto: Arquivo pessoal
No condomínio onde a família mora, Gustavo também apronta das suas. É comum ele sumir e minutos depois as vizinhas de Mabel mandarem fotos do garoto deitado no sofá, chupando pirulito. “ em horas que o Gu é bem folgado, mas a vizinhança já se acostumou com ele”, argumenta a mãe.
Mabel afirma que Gustavo tem dormido e comido bem, além de estar estabilizado emocionalmente. Ela também esclarece que a nova escola, pra onde também foi levada sua irmão Melissa, tem feito um trabalho excepcional com o menino. “Não parece que ele chegou há um mês no colégio, tamanha a intimidade que ele aparenta já ter com seus novos colegas e professores”, finaliza a emocionada Mabel.
Colégio
A Escola Municipal Antônio Ferreira da Silva, localizada no bairro São Cristóvão, onde Gustavo passou a estudar, é referência no atendimento a crianças com limitações físicas e cognitivas.
A unidade é referência no atendimento a crianças com limitações físicas e cognitivas | Foto: Prefeitura de Porto Velho
A situação constrangedora vivida pelo menino fez com que o próprio colégio oferece vaga para o garoto e sua irmã. A escola é considerada modelo na acolhida a alunos portadores de autismo ou outras condições diferenciadas. No local, a diretora Andreia Valéria costuma receber os estudantes no portão de entrada, sempre com muito carinho.
Andreia Valéria, diretora da escola Antônio Ferreira da Silva
“Nossa escola tem 540 alunos matriculados e mais de 70 são portadores de alguma condição, como Síndrome de Down, cadeirantes, deficientes visuais e, principalmente, crianças com espectro autista”, explica a diretora.
A unidade transformou a exclusão social em acolhimento. Hoje, a escola é reconhecida por possuir uma estrutura física e pedagógica que proporciona todas as condições de aprendizagem a esses estudantes.
Outro ponto de destaque do colégio, é que é oferecido o diferencial de ter um professor acompanhante, cuidadores que atuam prestando apoio aos professores, que atendem exclusivamente crianças autistas e demais estudantes com alguma limitação.
Maria Socorro Oliveira é uma dessas profissionais. A professora desenvolve atividades com alunos autistas há três anos e garante que a experiência é única:
“Com eles, nenhum dia é igual ao outro. São crianças com muitas habilidades, mas também com restrições. Entendemos que cada uma possui um limite e uma forma específica de processar o ensino e realizar as atividades”, explica.
Dina Farias tem uma filha de nove anos matriculada na escola | Foto: Prefeitura de Porto Velho
Dina Farias tem uma filha de nove anos matriculada no 3º ano do Ensino Fundamental. A servidora pública conhece bem a realidade dos pais de crianças autistas e destaca que a dedicação dos educadores faz a diferença na vida da estudante.
“A maior parte das escolas não possui uma estrutura e corpo docente para receber crianças autistas. Aqui, minha filha conta com profissionais capacitados e com dedicação exclusiva. Ela está se desenvolvendo e acredito que as perspectivas para ela no futuro são as melhores”, afirma.
Outra opção
Famílias de Porto Velho que precisam de algum atendimento especializado para crianças e adolescentes de 5 a 17 anos com transtorno mental moderado ou grave contam também com a assistência do Centro de Atenção Psicossocial (Caps 1) Infanto Juvenil.
Caps Infanto Juvenil | Foto: Prefeitura de Porto Velho
O serviço é oferecido pela Prefeitura de Porto Velho de forma gratuita e recebe pacientes de Rondônia e até de outros estados. A vida de Deuza Nascimento de Almeida mudou quando os dois filhos foram diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Deuza, mãe de duas crianças autistas | Foto: Prefeitura de Porto Velho
Cansada de esperar atendimento onde morava, em Rio Branco (AC), ela mudou para Porto Velho e hoje se sente acolhida pelo Caps. “Eu vim para procurar tratamento para os meus dois filhos. No mês em que cheguei já consegui consulta para eles, foi assim muito rápido.
Hoje eles tomam medicação, estão mais sociáveis, recebem muitos elogios das professoras na escola e pra mim foi uma benção”, contou a mãe.
O atendimento, segundo Deuza, foi completo. Primeiro veio a comprovação do diagnóstico de autismo com exames e a indicação de medicamentos adequados para o tratamento.
Em seguida, no caso do Micael de 6 anos, foi iniciado o acompanhamento quinzenal com a terapeuta ocupacional para evolução e desenvolvimento dele.
“Você vê a evolução dele e tudo graças ao Caps. Ele sai daqui muito feliz, para ele a terapia é uma brincadeira.
Em Rio Branco ele ficou numa fila e aguardou dois anos, sendo que ele já estava em tratamento aqui. Se eu tivesse esperado, seriam dois anos perdidos do meu filho.
Eu não tenho nem palavras pra expressar o quanto o atendimento aqui foi e é importante para nós”, disse Deuza, agradecida pela oportunidade.
A gestora da unidade explica que as crianças são recebidas por demanda espontânea. Hoje são 3,5 mil pacientes, número que cresceu muito durante a
pandemia da covid-19.
Edina Gonçalves, Terapeuta Ocupacional do Caps, explica que o acompanhamento dura em torno de 40 minutos com cada paciente. As sessões estimulam as áreas de dificuldade do autista, a exemplo das habilidades motoras.
“Nós elaboramos atividades para trabalhar essas dificuldades com a criança de forma lúdica. Ele é atendido e já sai com a próxima sessão agendada”, concluiu a profissional.
O Caps Infanto Juvenil funciona de segunda a sexta-feira em horário comercial e está localizado na rua Matrinchã, bairro Lagoa.