Em busca da ressocialização, encontramos exemplos de órgãos públicos que oferece novas oportunidades. O MP foi um dos órgãos que acreditaram na mudança e muitos ex-detentos, agora trabalham do lado da justiça.
Foto: Divulgação
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Deixar o crime para trás não é só questão de força de vontade. Há marcas que persistem. Para se tornarem cidadãos comuns. Ex-detentos precisam provar algo que não está no papel – a vontade de refazer as suas vidas honestamente. Durante três meses, nossa reportagem acompanhou pessoas que deixaram o sistema penitenciário de Rondônia, e a luta de alguns deles para mudar suas vidas através do mercado de trabalho e serem aceitos de volta a sociedade.
"Quando a polícia me para, o que interessa é isso aqui, ó! ". Adalberto retira um papel dobrado da carteira e mostra o contracheque. O emprego de 'faz-de-tudo-um-pouco' em uma oficina mecânica de Porto Velho é a garantia real da sua liberdade. Bicos não evitam problemas, apenas os aliviam.
Adalberto em seu trabalho
"Quando a polícia me para, o que interessa é isso aqui, ó! ". Adalberto retira um papel dobrado da carteira e mostra o contracheque. Foto: Paulo Besse
Na casa de um cômodo, há internet e micro-ondas. A funcionalidade do espaço lembra a vida na cadeia, que demanda inteligência. É mais hardcore do que pagar os juros do cartão de crédito. Uma dívida na prisão pode valer a vida. Adalberto busca seu tênis novo no quintal. Foi parcelado em dez vezes. O valor é igual ao seu salário - cerca de R$ 700.00 reais. Ainda brinca que a mulher gasta muito. Mas é uma questão administrável. O mais importante, ele sabe, é não esquecer a lição número um da cartilha: sobreviver.
Em alguma cadeia de Rondônia, naquele mesmo momento, alguém aprendia a lição número dois: resistir. Na difamada "faculdade de bandidos", conversa-se sobre planos. Assim que estiverem livres, vão roubar, assaltar e seguir a "carreira". A maioria não pensa em outro destino. É a profissão deles, afinal.
Mas há quem decida contrariar a regra. Lá dentro, em silêncio, em segredo, é quando um detento resolve mudar de vida e virar o que eles chamam de "Zé Povinho" - um cidadão como qualquer outro na multidão.
Ezequiel reconstruindo a vida
“Ex- detento só abandona o crime se enxergar que tem outra opção”, afirma Ezequiel. Foto: Reprodução
Ezequiel conta que teve uma adolescência boa, feliz. Em parte, pode ser verdade, mas vendo a sua casa, sem cadeiras, sem mesa, quanto menos café, é possível entender por que a rota de fuga foram as drogas. Ele e a mãe trocaram um terreno pela reforma do imóvel que habitam. "Estava semidestruída", afirma.
Usuário de crack, cocaína e tudo o mais que pintasse, o jovem roubava para sustentar o vício. Era detido, passava alguns dias na delegacia, no máximo um centro de detenção provisória, e era solto. Em um assalto a residência, foi encurralado pela polícia e ficou preso por quatro anos e oito meses. Após dois anos atrás das grades, ficou limpo e começou a série de 'insights' comuns a outros que decidem se restabelecer socialmente: mudar de amizades, de hábitos e de vida. Na moita, sem falar aos colegas de cela, porque não pega bem.
Ezequiel completou o ensino médio na penitenciária de Porto Velho. Está inscrito no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Estudou mecânica quando já cumpria pena. Devagar para não assustar, ele foi mudando a rotina, a cabeça. Até que as portas se abriram... para o nada. Fora da prisão desde dezembro, ele foi a 40 entrevistas de emprego antes de desistir da contagem. O diagnóstico de Ezequiel para tamanho insucesso é simples, e, provavelmente, compartilhado por muitos:
¨Muita gente acha que se contratar vai pôr um bandido dentro da empresa, essas coisas, né? A dificuldade maior que eu tenho é essa. ¨
Força mental e perseverança. Confirmados. Discrição e dedicação às tarefas. Ok. Comportamento e desempenho nas atividades. Muito bom. Trabalhando enquanto cumprem pena, os detentos vão ganhando conhecimento e confiança para a reintegração ao mundo livre. É um ensaio dentro das regras, já ganham salário, podem enviá-lo à família. Aquela empolgação, as coisas parecem estar nos trilhos... Mas para por aí. O final feliz está longe deste parágrafo. No mundo real, a primeira notícia que o Estado tem para lhe dizer é: aquele emprego do semiaberto acabou. Boa sorte na rua.
VOCÊ CONTRATARIA UM EX-DETENTO?
Quem passa pelo Sistema Penitenciário Brasileiro, mesmo após ter cumprido a pena que foi estabelecida pelo Estado, estará marcado para sempre pelo estigma de ser um ex-presidiário.
A reportagem revela o drama de presos que são despejados na sociedade após anos de encarceramento sem que, durante esse período, o Estado tenha tomado providências para que essas pessoas se tornassem aptas a encarar o novo desafio. Há o preconceito, a dificuldade de arranjar trabalho, a necessidade de se readaptar. E há o medo de cair de novo em erro.
Felizmente a matéria do Rondoniaovivo mostra que há alguns exemplos positivos e esperançosos de órgãos públicos aqui mesmo em Rondônia que conseguem dar condições para que o presidiário mude e, uma vez fora do sistema, volte a se tornar um cidadão com ficha limpa. Esse é o caso do Ministério Público de Rondônia, que emprega os ex-detentos como forma de ressocialização.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DE RONDÔNIA ABRIU AS PORTAS PARA OS EX-PRESIDIÁRIOS
"É preciso encontrar caminhos sólidos para aqueles que pagaram pelos seus crimes e desejam viver novamente em paz", garante o procurador.Foto: Reprodução
De acordo com o Procurador Geral do Ministério Público de Rondônia, Airton Pedro Marin Filho, o MP possui, desde 2003, convênio com a Secretaria Estadual de Justiça (Sejus), através do Fundo Penitenciário (Fupen). O objetivo é a ressocialização e reintegração ao convívio social de apenados que estejam sob os regimes fechado, semiaberto e aberto.
Os reeducandos são admitidos em caráter temporário para a execução de serviços administrativos auxiliares e gerais.
Pelo trabalho são remunerados com um salário-mínimo, auxílio-transporte e almoço aos que optam por fazer apenas uma hora de intervalo.
Os valores da remuneração são repassados ao Fupen a quem compete pagar os reeducandos. Eles trabalham como qualquer outro funcionário da instituição. São oito horas diárias somando 40 horas semanais. Desde o início do convenio foram admitidos cerca de 220 reeducandos distribuídos nas instituições da Capital e interior do Estado.
A Seleção dos candidatos obedece, à indicação da Sejus/Fupen seguido de avaliação psicológica com profissional do MPRO, análise do Núcleo de Inteligência vinculado ao Centro de Atividades Extrajudiciais e análise da Assessoria Militar.
O desligamento só acontece com o encerramento da pena, a pedido do reeducando ou por recomendação da chefia imediata da unidade em que o reeducando está lotado.
“O trauma da sociedade é realmente grande quanto a tudo isso, especialmente para aqueles que perderam pessoas queridas em atos de violência. No entanto, num Estado Democrático de Direito, não há outro remédio senão buscar caminhos que possam dar uma trégua a essa guerra não declarada. É necessário que as leis existentes sejam cumpridas e penas sejam aplicadas para combater os criminosos. Mas mais importante que a aplicação da lei são os investimentos em educação e em condições de vida dignas para combater realmente a criminalidade. Se o Estado falha nesse ponto, não pode falhar uma segunda vez com quem está cumprindo sua pena. É preciso encontrar caminhos sólidos para aqueles que pagaram pelos seus crimes e desejam viver novamente em paz. Caso contrário, ficaremos presos nesse círculo que só tende a se alargar “ explicou Airton Pedro Marin Filho, procurador geral do Ministério Público de Rondônia.
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Ricardo estava havia menos de um mês em liberdade quando conversou com nossa reportagem. Nesse período, recebeu três convites para voltar a roubar. "Eu disse que estava sossegado. [O bandido] falou que eu estava fazendo a coisa certa", conta. Com a voz empolgada, ele comemora uma grande conquista. Entrega compras de um minimercado por R$ 500 mensais. Um valor provavelmente inferior ao lucro que ele tinha com roubos. Ainda assim, a cifra evitou a criminalidade.
Ricardo na luta diária para provar a mudança
"Já falava para todos lá dentro que eu ia trabalhar, ia sair dessa", conta Ricardo. Foto: Paulo Besse
"São poucos os que querem mudar", afirma Ricardo. A vida na cadeia é baseada no mérito distorcido do crime. Quanto mais infrator, mais respeito. Rejeitar essa lógica pode ser perigoso, no mínimo chama atenção. "Já falava para todos lá dentro que eu ia trabalhar, ia sair dessa. Alguns riam de mim, tudo bem, Deus abençoe", afirma. Abrir o jogo, como Ricardo fez, é macular a honra aos olhos da comunidade. Raciocínio similar ao do jogo aqui fora, porém, invertido. Algo como o filho dizer ao pai rico que vai virar hippie. Uma vida sem recompensa, sem moral, diria. Mudar de tribo para quê?
Ezequiel saiu de casa atrás de um cigarro. Exercitando a humildade pela milionésima vez, conseguiu fumar e recebeu uma proposta de trabalho. Teria chegado a hora da virada? "O cara disse que se eu fosse com ele não ia mais ficar nessa situação", lembra. Estava lá a mão estendida do crime, mais uma vez. O jovem respirou fundo e negou o convite. Diz ter se agarrado à ideia de que um dia realmente tudo será diferente. Seria clichê, se não fosse real. No último contato com nossa reportagem, fazia bico em uma empresa de banheiros portáteis para eventos. Aguardava ser chamado novamente, sem previsão concreta. Ainda assim, sentia certo alívio. Ao menos naquela semana.
Ligando a TV, aparece aquela chamada: "Policial é condenado após matar por vingança". Aura de terror, a lei distorcida, um homem perigoso a menos nas ruas. E se esse homem mudar, quem vai dar um trabalho a ele? Você daria? Angelo passou por isso. Como resume, "ser ex-detento já é ruim, ex-policial homicida, então, o rótulo é maior ainda". Após cumprir 14 anos e cinco meses, a saída inicial para o desemprego foi a informalidade como segurança em Rondônia onde tem parentes (Para protege-lo, não vamos revelar a cidade, foi a condição imposta para entrevista). "Amigos com ligações políticas me prometiam ajuda em minha cidade, mas nada acontecia", afirma.
O contracheque veio um tempo depois para o ex-policial, que tem jeitão duro, de militar, mesmo quando faz piada. "Meu cabelo está comprido, até", brinca. Angelo trabalha na triagem de protestos de títulos e ações judiciais. O chefe dele hoje comenta que à época da contratação não houve frisson. Deu-se emprego a um ex-detento como a qualquer outro. "Ele é uma pessoa normal, mantém seu rendimento na função e não tenho do que reclamar".
Angelo, reconstrução de vida
Angelo trabalha na triagem de protestos de títulos e ações judiciais. Reprodução: Facebook
Nossa reportagem pergunta se ele chegou e falou: "Chefe, matei duas pessoas". A resposta é direta e reta. "Não tem como florear isso. Fiz? Fiz. Paguei? Paguei. Estava errado? Estava, tenho consciência", afirma. Angelo aceita os R$ 1.600 mensais de bom grado. Conseguir trabalho aos 50 já é uma vitória. Naquela manhã de segunda-feira, chegou ao serviço contando que ele e o filho fizeram bate-volta na fronteira com o Mato Grosso para pescar no dia anterior.
Adalberto foi condenado aos 18 anos. Já era pai. No cárcere, eram tempos de trevas, segundo ele piores do que se vê hoje. Entre fugas e retornos, foram quase 20 anos na cadeia, por roubos, assaltos, tráfico. Hoje vovô quarentão, está feliz e de carteira assinada.
"Quando eu cheguei no presidio, morria muita gente. As facções implantaram a paz. Você não vê mais o preso ter que dar a visita dele (mães, irmãs) para o outro preso fazer sexo, não vê o preso ter a alimentação que a visita levou ser tomada, não vê o preso tendo que ter relação sexual com outro preso, isso não existe mais", afirma.
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