ESPECIAL - Quando a comunidade adota uma escola – Por: Francisco Marquelino Santana

ESPECIAL - Quando a comunidade adota uma escola – Por: Francisco Marquelino Santana.

ESPECIAL - Quando a comunidade adota uma escola – Por: Francisco Marquelino Santana

Foto: Divulgação

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 A escola pública carrega em si um mundo heterogêneo, diversificado, rico de uma vasta pluralidade cultural. Porém, também carrega em si condições precárias em todos os seus aspectos. A escola parece não ouvir os clamores daqueles que sobrevivem ao seu redor. Para estes a escola torna-se verdadeiramente algo intocável e isolado. É possível na nossa realidade amazônica, ainda existir comunidades sem escola? É exatamente tentando responder a esta pergunta que buscaremos conhecer o “Projeto Adote uma Escola”, desenvolvido pelo Núcleo de Ensino da Ponta do Abunã durante o período 2002/2004, idealizado por mim e coordenado pelo senhor Alzerino Martins dos Santos. Afrodescendente e “semianalfabeto”, Alzerino é um dos pioneiros de Extrema que escolheu a região da Ponta do Abunã para fixar residência. Inicialmente residiu numa chácara próxima ao núcleo urbano de Extrema, onde matriculou seus filhos na escola 13 de maio no inicio da década de 90. Sem “leitura e sem escrita” é sempre muito investigativo e questionador, e durante as reuniões de pais realizadas na escola, ele já defendia a ideia de uma escola em período integral para as crianças. Pouco tempo depois ele deixa a sede do distrito, vende a chácara e compra um sitio no ramal Mendes Jr, localizado a 8 km da aldeia indígena Kaxarari. Já em sua nova moradia, na companhia da esposa Nair e de mais seis filhos, Alzerino continuava plantando a semente de sua utopia no sentido de construir uma educação de qualidade. Seu sonho parecia cada vez mais distante, principalmente porque nos arredores da sua nova morada não havia escola, mas nem por isso deixava escapar de sua cabeça o amor pela educação. O projeto 24 horas ainda não havia escapado de seu grande ideal, Alzerino queria que o Governo do Estado, prefeitura e secretaria de educação, valorizassem o homem do campo e sua produção, e que por sua vez as crianças da escola se alimentassem com uma merenda de qualidade.
 
Logo quando chegou à comunidade do ramal Mendes Júnior, Alzerino foi criticado por um fazendeiro da região que dizia ser impossível um pequeno colono e sem nenhum recurso financeiro, manter-se por muito tempo na terra. Como não sabia ler nem escrever e em resposta ao fazendeiro, Alzerino pediu ao seu filho Rafael, ainda em fase de letramento, que escrevesse numa folha de caderno o que ele gostaria de responder sobre as críticas sofridas. Desta forma Alzerino foi falando e Rafael foi escrevendo. Quando Rafael concluiu, Alzerino disse que estava muito bom, e que agora ele iria transcrever para uma tábua de madeira, e depois pregá-la em frente ao seu sítio. De fato, ele entalhou e em seguida pintou numa prancha de madeira, sua resposta ao fazendeiro. Vejamos como ficou a placa: 
 
Placa Alzerino
Foto: NEPA/2002
Assim ficou a mensagem de Alzerino: “Tu chegou ontem. O que importa? Não sou andarilho”.Alzerino guarda com carinho as suas cartas, seus filhos eram seus escritores. Em casa ele desabafa, chora, sorri e pede aos filhos que escrevam o que ele sente e o que ele sugere de melhor aos que estão ao seu redor. Sempre que havia debates, discussões sobre determinado assunto em qualquer local da comunidade, ao chegar em casa, ele chamava um dos seus filhos escritores para escrever sobre o assunto discutido. Alzerino vai à luta, não descansa, quer vencer. No ano de 2002 inicia uma nova batalha, ele agora quer construir uma escola para as crianças de sua comunidade. Vai à extrema e encontra o recém-criado núcleo de ensino da Ponta do Abunã. Começa a participar e fala do descaso que estava havendo com as escolinhas rurais “multisseriadas” e com o estado de abandono das mesmas. Percebeu que não havia recurso no NEPA para reforma das escolas e muito menos para construção de novas unidades de ensino. Alzerino achava que era preciso fazer algo novo, e assim o fez. Ele falou da necessidade que havia da comunidade acompanhar as escolinhas rurais mais de perto, principalmente porque as precariedades das estradas dificultavam o acesso às escolas. A partir daquele momento Alzerino tornou-se “padrinho das escolas multisseriadas”. Começou a divulgar a idéia de unir escola e comunidade. Entrava numa estrada, saia na outra. A pé ou a cavalo, ele percorria todos os ramais de Extrema, analisando de perto a realidade de cada escola e a relação desta com a comunidade. Para cada escola rural multianual de Extrema e nova Califórnia, Alzerino em conjunto com o diretor do NEPA, consegue um padrinho ou madrinha para cada escolinha. Uma reunião foi convocada e todos os padrinhos compareceram, a partir dali estava nascendo o projeto “Adote uma Escola” e o senhor Alzerino foi escolhido o coordenador do projeto.
 
A partir daquele momento o trabalho seria árduo, padrinhos e madrinhas iriam enfrentar os desafios de conquistarem uma escola mais digna, mais inclusiva e mais cidadã, outros, porém, iriam travar uma luta maior, iriam trabalhar no sentido de conseguirem implantar a primeira escola da comunidade, a final o trabalho estava apenas começando. Padrinhos e madrinhas encontram escolas rurais abandonadas e em estado caótico, escolas sem nenhuma assistência, onde apenas os professores estavam caminhando junto com a recém-criada gerência pedagógica do NEPA através do projeto “Encontro pedagógico”. Durante as reuniões realizadas envolvendo padrinhos e professores, pode-se perceber que o projeto “adote uma escola” nasceu dentro de um grande entusiasmo, todos deram as mãos e começaram a trilhar um novo caminho para cada uma de suas comunidades, e foi esta organização sadia e consistente da comunidade escolar que fez gerar uma nova era para a educação das escolas multianuais da região da Ponta do Abunã.
O Encontro de padrinhos e madrinhas/Projeto Adote uma Escola
FOTO: NEPA/2002
 
Ainda no ano de 2002 o coordenador do projeto “Adote uma Escola”, o pai de aluno Alzerino Martins dos Santos, logo que assumiu a coordenação do projeto viajou a Porto Velho juntamente com os servidores da educação da Ponta do Abunã Para participar do primeiro Congresso Municipal de Educação realizado pela Secretaria Municipal de Educação. Na oportunidade o senhor Alzerino proferiu um discurso, parabenizou a realização do evento e disse só não estar mais satisfeito porque reside em uma comunidade onde existem cerca de 30 crianças impedidas de estudar pela falta de escola. Naquele momento, Alzerino enfatizou a vontade que ele tinha de ver aquelas crianças e adolescentes que estavam sem estudar, sentadas um dia nas mesmas cadeiras onde estavam àquelas pessoas letradas sentadas. Bastante aplaudido e emocionado, Alzerino deixou escapar algumas lágrimas que seriam no amanhã, responsáveis pelo nascimento da primeira escola por ele adotada: a escola rural “Bem Aventurança”. Foi exatamente esta a denominação atribuída por ele a tão almejada escolinha que ele mesmo iria construir. De fato, dias depois o mesmo conseguiu alguns materiais de construção junto a Prefeitura. Alzerino às duras penas conseguiu construir a escola municipal Bem Aventurança ainda no final de 2002, e que depois de equipada pelo NEPA/SEMED, começou a funcionar normalmente a partir de 2003. A vitória de Alzerino e de sua comunidade serviu de exemplo e ânimo para os demais padrinhos alavancarem de vez o projeto “Adote uma Escola”. A escola Bem Aventurança foi sem dúvida o marco inicial do Projeto Adote uma escola e o pai de aluno Alzerino Martins dos Santos, como homem simples e humilde da Amazônia brasileira, tornou-se também um marco de luta, resistência e organização de um povo que com muita determinação conseguiu alcançar voo e realizar o sonho de uma educação cidadã, democrática e inclusiva.
 
Construção da escola Bem Aventurança (ao alto: Sr. Alzerino)
Foto: NEPA/2002
Escola Bem Aventurança
Foto: NEPA/2002
A sociedade, infelizmente, muitas vezes rotula o “analfabeto” de ser um sujeito incapaz e desprovido de conhecimentos. Este preconceito ainda amarga o exercício de cidadania. Paulo Freire ao longo de sua trajetória como grande educador e alfabetizador sempre prezou pela ética e pela politização do educando. O alfabetizado que ainda não se descobriu criticamente continua despolitizado e, portanto, vive a contribuir para manutenção e reprodução das desigualdades sociais vigentes. É evidente que gostaríamos de ter um país totalmente alfabetizado, mas que este Brasil alfabetizado, seja, acima de tudo, um Brasil que adote uma alfabetização crítica responsável pelo combate incessante às injustiças sociais que atinge grande parte da população. O que não pode passar despercebido são as peculiaridades regionais que cercam a escola da vida do “analfabeto”. Uma vida historicamente rica e heterogênea. Esta pluralidade cultural encontrada em diversos cantos do planeta mostra o quanto é importante as experiências de vida ali encontradas e quantos benefícios científicos e sociais são dali extraídos em prol da sociedade moderna letrada.
 
Foi exatamente no ramal Mendes Júnior que nasceu o projeto “Adote uma Escola”, nasceu de forma humilde e natural para em seguida percorrer todas as estradas da região.
 
No ano de 2003 todos os padrinhos e madrinhas das escolas multianuais que compunham o projeto “Adote uma Escola” foram diplomados em Extrema pela Secretaria Municipal de Educação.
 
O projeto “Adote uma Escola” tornou-se uma experiência escolar Bem sucedida, notadamente por envolver vários seguimentos sociais e por envolver diretamente em suas ações Todos aqueles que compõem a comunidade escolar.
 
Um dos marcos mais recente da educação brasileira foi a realização da Conferência Nacional da Educação (CONAE) em Brasília no ano de 2010. A conferência foi precedida de várias outras conferências municipais e estaduais realizadas em todo país. No decorrer das conferências foram sendo escolhidos os delegados que representaria suas categorias na conferência nacional. Participavam representantes da sociedade civil, agentes públicos, trabalhadores em educação e demais integrantes da comunidade escolar, tais como, estudantes pais e mães de alunos (ou responsáveis). O tema central da conferência era: “construindo o sistema nacional articulado de educação: o plano nacional de educação, diretrizes e estratégias de ação”.
 
Durante as conferências municipais e estaduais, o ex-coordenador do projeto “Adote uma escola”, Alzerino Martins, participou ativamente de todas. E o resultado não foi outro, Alzerino foi selecionado para participar da Conferência Nacional de Educação em Brasília.
 
 
Alzerino, “analfabeto”, homem politizado. Questionador, investigador e polêmico. De mãos calejadas pelos cabos da foice e enxada, de pés feridos pelos espinhos de taboca e pupunha, de sangue fortificado pelos sucos de açaí, bacaba e patuá. Tem uma vida dedicada à educação e uma vasta folha de relevantes serviços prestados a professores e alunos da Ponta do Abunã. Outra grande conquista de Alzerino foi conseguir junto a SEMED a implantação do transporte escolar rural, pois os alunos ao concluírem o 5º ano precisavam dar continuidade a seus estudos nas escolas localizadas na sede do distrito de Extrema. Neste ano letivo de 2012 a escola Bem Aventurança foi paralisada face ao número insuficiente de alunos e devido à implantação do transporte escolar naquela comunidade. Desta forma Alzerino vai construindo do seu jeito os degraus da escola cidadã. Brasileiro, sim senhor! Sem, porém discriminar o universo multicultural que nos mistura, pois conforme relata Paulo Freire: “a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”. 
Alzerino dos Santos/Conferência Nacional
Foto: CONAE/2010
 
Foi neste sentido que surgiu a figura do senhor Alzerino Martins dos Santos, o coordenador do projeto “Adote uma escola”. Como já foi dito, Alzerino tornou-se peça fundamental na execução do projeto, pois se dedicou de forma honrosa a educação, conseguindo importantes melhorias para as escolas multianuais da região. Além do êxito alcançado pelo projeto “Adote uma escola”, Alzerino ditava para seus filhos, alguns ainda semialfabetizados, e estes escreviam as suas alegrias, revoltas, projetos de vida, reuniões de que participava e outras reivindicações de melhorias sociais principalmente na área da educação, da qual é um grande defensor e apaixonado. Alzerino atualmente vive a lamentar a ausência dos seus escritores. Os rapazes casaram-se, a outra filha, Lindekésia, a que mais escrevia ultimamente para o pai, ficou uma temporada sem estudar, foi morar na cidade e atualmente concluiu o ensino médio através da educação de jovens e adultos. Em sua casa restaram apenas em sua companhia, a esposa Nair e a filha Elza, que estudava na escola Bem Aventurança. Elza é portadora de síndrome de Dow.
 
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