O roteirista e diretor Aris Aster tem um humor peculiar, mas a sua especialidade é mesmo o terror, em essência a partir do comportamento humano, suas falhas e diretrizes perante a vida. Parece pretensioso para um cineasta que com dois filmes do gênero conseguiu impor uma marca sua e que o coloca entre os mais talentosos de sua geração, os filmes “Hereditário” (2018) e “Midsommar - O mal não espera a noite” (2019) causaram furor em público e crítica, respectivamente, se tornando sucessos.
Mas “Hereditário” tem uma marca absoluta no gênero terror por ser psicológico, envolto num cenário de luto e estranheza, desde os primeiros minutos.
Você tem nervos fracos?
Se incomoda com um drama familiar desesperador?
Tem gatilhos referentes a perdas na família, traumas ligados ao passado e que te conecta a uma situação tensa?
Então a recomendação de amigo é: nem se aproxime desse filme.
É das experiências mais agonizantes e transformadoras que você vai ver. Disponível no catálogo do serviço de streaming da Netflix, "Hereditário" é uma das melhores e mais instigantes obras de horror já concebidas, o filme leva a referência do clássico "Inverno de Sangue em Veneza" (Nicholas Roeg/1973) e segue a premissa da imprevisibilidade de ações dos personagens em confronto com a situação que enfrentam.
A história mostra uma família, os Graham, se recuperando de forma dolorosa a morte da matriarca da família, ao mesmo tempo que coisas estranhas passam a acontecer no seio familiar, o pai, Steven (Gabriel Byrne), a mãe, Annie (Toni Collette, também produtora do filme e que está espetacular), uma filha especial de 13 anos, Charlie (Milly Shapiro, uma revelação) e um adolescente instrospectivo, Peter (Alex Wolff).
Charlie sente o impacto da morte da avó e passa a ter sensações estranhas, pois fica um peso do luto e da perda repentina da senhora, o que causa também uma sensação de dano emocional irreversível em sua mãe, Annie, que acaba buscando ajuda num daqueles grupos na igreja onde discutem entre si seus problemas e traumas. Ali ela revela segredos chocantes a respeito da sua vida e passado com a mãe.
Agora como fazer uma crítica mais expansiva se em determinado momento o filme - antes da metade - tem uma virada absurdamente assustadora e brutal?
A partir desse momento o que era estranho fica mais intrigante, envolvendo a estrutura dessa família, denotando segredos abafados que traçam uma linha temporal incômoda e pesada.
O choque que o diretor Aster apresenta é em colocar a partir dessa virada não só o estramento, mas como todo o ambiente na casa dessa família fica carregado, a ponto de transmitir sensação tensa em cômodos escuros, arroubos dramáticos de alguns membros que eclodem em confronto silencioso ou ainda explosivos, levados ao limite do desespero.
O véu psicológico de toda uma situação muda, transforma a forma que todos se tratam e cabe a nós, espectadores dessa consequência narrativa, assistir tudo com receio, sentindo as emoções apresentadas. É uma sensação de incômodo proposital.
O roteiro é muito inteligente por dar aos personagens, principalmente o de Collette - que é uma espécie de artista/arquiteta que trabalha com maquetes de casas e ambientes -, características bem divisíveis dos momentos que vivem na trama e como o processo de transformação vai se tornando ainda mais dramático a cada ato que avança na história.
É um filme instigante desde o primeiro momento, da sequência inicial que abre, mostrando algumas maquetes de casas e de cômodos e com a câmera passeando entre elas até focalizar na maquete de um quarto. A imagem da camera vai se aproximar bem devagar do quarto, mostrando detalhes, até mostrar que não víamos mais uma maquete, mas um quarto real - o efeito ótico é incrível!
"Hereditário" nos apresenta um horror autêntico sem pirotecnia de sustos ou excessos de sangue, pelo contrário, bem ao contrário, é um drama familiar carregado, pesado, onde tudo parece caminhar para uma tragédia anunciada, mas no tempo certo e aos poucos, até explodir num climax crescente.
Não é um filme que vai promover sustos fáceis, pois tudo no entorno tem uma carga dramática e que pode provocar arrepios. As reviravoltas são inesperadas. O terço final é inteiramente sufocante e deixa uma resolução mística em aberto com a revelação que parecia estar a todo tempo na frente de todos, a partir do falecimento da matriarca da família como foi mostrado no início do filme.
Incrível que “Hereditário” tenha sido escrito e dirigido por um diretor estreante, ousado em explorar temas como luto, trauma familiar e ocultismo.
Aster havia concebido o roteiro não para um filme de terror, mas um drama familiar, porém quando percebeu que tinha potencial para incorporar elementos de horror e explorar as emoções da família em decadência, ele criou sequências violentas e com teor ocultista.
Em entrevista o diretor revelou que se inspirou em filmes como "Gente como a Gente" (1980), "Tempestade de Gelo" (1997) e "Entre Quatro Paredes" (2002), além de clássicos de terror como "O Bebê de Rosemary" (1968), clássico do diretor Roman Polanski e a obra prima "Os Inocentes" (1961), do diretor Jack Clayton.
“Hereditário” está na lista dos 10 filmes mais assustadores dos últimos anos. Os dados são disponibilizados em um ranking que é montado pelo portal Broadband Choices desde de 2020, que utiliza o termo “Ciência do Medo”, um experimento que consiste em reunir 250 pessoas e captar o batimento cardíaco por minuto (BPM) delas durante a exibição de um filme de terror – a experiência é acompanhada por médicos.