“Me disseram que foram vinte minutos. Não ví nem ouvi nada, a única sensação foi de um fogo que parecia atravessar as veias do corpo”. Sem esconder a emoção, o produtor rural Gilmar da Silveira, morador de Seringueiras, a 580km de Porto Velho, conta pausadamente a experiência que teve quando precisou ser intubado por causa da Covid-19.
Emocionado e falando com uma postura completamente diferente da anterior ao drama vivido por causa do coronavírus - ele não acreditava e nem tinha medo do vírus -, Gilmar diz que se despediu da família quando o colocaram na ambulância para seguir viagem em direção ao estado do Mato Grosso.
“Pensa só. Todos os dias notícia de gente morrendo. As pessoas iam para a UTI e de lá seguiam para o cemitério. Não tinha como pensar em outra coisa. Achava que seria um caminho sem volta. Era uma coisa apavorante, tu pensa em toda a tua vida, passa um filme”, relata Gilmar que ainda guarda lembranças muito nítidas de um pesadelo que parecia interminável.
UTIs lotadas em Rondônia
Início
O dia começou sonolento para Gilmar, mas ele não deu muita bola. Achou que podia ter sido apenas uma noite mal dormida. Ao meio-dia não sentiu o gosto da comida, logo depois teve um mal-estar e deitou um pouco. Quando teve febre, à noite, percebeu que alguma estava errada. Isso aconteceu no início de março deste ano.
No dia seguinte, já imaginando estar com Covid, Gilmar da Silveira fez o exame da coleta de secreção no nariz e foi para casa com tosse e ainda febre. Esperou três dias e durante o período tomou o coquetel de medicamentos com Cloroquina, Ivermectina e Azitromicina.
Mesmo sem sentir gosto nenhum, se alimentava para não ficar muito fraco. Fez raio X do pulmão. O resultado foi o mesmo do exame da coleta de secreção nasal. Negativo para Covid-19. Gilmar fez novo raio X onde apareceu uma pequena anomalia. Somente após uma Tomografia é que foi constatada a gravidade da situação.
Estava com coronavírus, precisava urgente tomar antibiótico e internar. Em oito de março, foi para o hospital de Seringueiras onde chegou sem oxigenação no sangue. Recebeu oxigênio através de respirador, mas o quadro de saúde só piorava.
Transferência
O médico que fez a Tomografia em Gilmar o alertou para transferência imediata. Ele precisava urgente de UTI especializada e o mais rápido possível. O prefeito de Seringueiras, Armando da Silva, amigo pessoal de Gilmar, ficou sabendo da urgência da situação e entrou em contato com a Secretaria Estadual de Saúde para conseguir um avião que transportasse o paciente.
Não havia aeronave à disposição, o Estado já passava por grandes dificuldades de transporte de doentes por conta do coronavírus, além disso também não havia leito disponível em Porto Velho, era preciso entrar em fila de espera. Como era uma corrida contra o tempo, foi conseguida uma ambulância com três cilindros de oxigênio e arrumada uma vaga em um hospital de Cuiabá, no Mato Grosso.
Gilmar em direção à Cuiabá, no Mato Grosso | Foto: Arquivo Pessoal
Gilmar saiu de Seringueiras às duas da madrugada. A ambulância precisou ir parando para troca de oxigênio. Primeiro foi em Vilhena, depois em Pontes e Lacerda e na sequência em Cáceres, onde ele teve a parada respiratória.
Gilmar diz que lembra vagamente das trocas de oxigênio e de que houve um momento onde tudo apagou. Em Cáceres, quando foi reanimado, a única coisa que recorda é de ter visto um enfermeiro pressionando uma bomba de ar em seu peito.
Pavor
Quando chegou em Cuiabá, ele estava com 90 por cento do pulmão comprometido. Foi direto para a UTI onde ficou três dias intubado. Gilmar conta que ao recobrar a lucidez ainda precisou ficar dois dias na cama, estava muito fraco e não conseguia andar.
Além da saúde física em cacos, ele diz que o estado emocional ficou completamente abalado. Havia 30 pessoas intubadas na UTI, três pacientes ele viu morrer. “Quando entravam na UTI e colocavam um biombo entre os pacientes, já sabíamos que alguém havia sido vencido pela doença”, explica Gilmar.
Foram 8 dias internado em Cuiabá até a recuperação. Quando não havia mais necessidade de oxigênio e já era possível caminhar, Gilmar teve alta. Era esse o critério para liberar pacientes e abrir vaga para outros. Olhando para o nada, ele diz ter hoje outra visão sobre o perigo que é o coronavírus. “Vou te dizer uma coisa: esse negócio é tão esquisito e perigoso que nem os médicos tem noção ainda como enfrentar”, explica Gilmar da Silveira.
Sobre a incrível reanimação após a parada cardíaca que teria sido de 20 minutos. “Alguma vez em sua vida você já deve ter escutado a frase de que para Deus nada é impossível né? Eu nem tive tempo de rezar desde a primeira intubação até a retirada do respirador na UTI de Cuiabá. Estou aqui, e só posso lhe dizer que tenho motivos demais para agradecer pela vida”, finaliza com voz pausada e com a certeza de que milagre existe.
Ciência
O medo e o cuidado ainda maior em relação ao coronavírus são o que restou da experiência vivida pelo produtor rural Gilmar da Silveira. Por mais incrível que possa parecer, ele não ficou com nenhuma sequela diante da parada respiratória que enfrentou.
Vários estudos científicos apontam que a partir de 10 minutos sem oxigenação, o risco de morte cerebral é muito alto. Danos neurológicos são comuns em quem tem parada cardíaca. Podem ocorrer dificuldades motoras, para falar, andar e para casos mais graves, pode levar até mesmo à permanência em estado vegetativo.
Ainda, segundo especialistas, as taxas de sobrevivência são baixas e em média, menos de 10% das pessoas sobrevivem. A principal sequela em casos de parada cardiorrespiratória são as lesões cerebrais. Isso se deve ao fato de o cérebro não suportar a falta de oxigenação (hipóxia) acima de cinco minutos. A partir desse momento, o paciente poderá apresentar lesões sérias, até mesmo irreversíveis.
Exceções
A neurologista Márcia Polin diz que em geral com cinco minutos já pode haver morte de neurônios. Pessoas com reserva metabólica maior, tem maior capacidade cerebral de resistir à hipóxia (diminuição das taxas de oxigênio no ar, no sangue arterial ou nos tecidos).
Márcia Polin, neurologista | Foto: Arquivo pessoal
No entanto, Márcia enfatiza que medicina não é uma ciência exata e há muitas variáveis a se considerar. Também deixa claro que existe o lado espiritual, que pode claramente interferir em qualquer caso onde não exista explicação científica.
2 meses
A aposentada dona Maria das Graças Gonçalves mora no sítio, junto com o marido, José Ribeiro, na zona rural de Candeias do Jamari, e ambos pegaram Covid em fevereiro. Seu Zé internou na UPA Sul, onde ficou apenas uma semana em tratamento e foi liberado.
José Ribeiro e a filha Marinete | Foto: Arquivo Pessoal
Já o estado de saúde de dona Maria foi se agravando e ela precisava ser internada com urgência. O problema é que não havia vaga disponível em UTI, em Porto Velho, e ela teve que ser intubada na madrugada do dia 14.
Houve uma grande mobilização para transferir a aposentada e finalmente surgiu uma vaga na região Sudeste. Dona Maria foi uma das últimas pacientes de Porto Velho transferidas para o Rio de Janeiro. Ela ficou 81 dias internada, sendo 55 deles na UTI.
Dona Maria internada na UTI no Rio de Janeiro | Foto: Arquivo pessoal
O tratamento da idosa foi acompanhado pela filha Marinete, que largou o trabalho para cuidar da mãe. Ela conseguiu ajuda de amigos e doações para se manter na capital carioca e vivenciou todo o drama provocado pelo Covid-19.
Dona Maria e a filha Mariente | Foto: Arquivo pessoal
Não reconhecida
Como Marinete saiu de Rondônia e era a única pessoa da família no hospital, os médicos abriram uma exceção e permitiram que ela visitasse a mãe meia-hora por dia. Para Marinete foi uma situação inusitada, já que a mãe se encontrava em coma induzido e não havia como se comunicar.
Foram quinze dias nessa rotina, sem conseguir falar com dona Maria e aguardar por uma reação que desse esperança de que poderia haver uma melhora rápida de saúde. Marinete revela que o trabalho incansável da equipe médica e a fé da família e de amigos, em uma grande rede de orações, foram o que salvaram sua mãe.
Marinete conversando com a mãe por videochamada | Foto: Arquivo pessoal
Ela diz que todos os dias a ansiedade era grande aguardando um médico ou enfermeiro sair da UTI. Quando alguém abria a porta o coração saltava, era uma tensão enorme esperar o médico passar para contar como estava sua mãe.
Era uma expectativa a cada instante, minuto. Sempre queria saber se ela tinha mexido um olho, a mão, manifestado qualquer tipo de reação.
Fora do corpo
No período de intubação e coma na UTI, dona Maria contou para a filha que via “ de longe” pessoas em sua volta, no entorno da cama. Não sabe se era alucinação devido febre pois queria “pular da cama” e fugir do local, mas parecia estar amarrada.
“Eu sabia que tinha gente ali, percebia eles conversando, mas ao mesmo tempo parecia que não falavam comigo, não me davam atenção. Também vi alguém do lado de fora da UTI, mas sabia que a pessoa não podia entrar”, explica dona Maria.
Ela finaliza dizendo que quando acordou, ainda na Unidade de Terapia Intensiva, a primeira coisa que fez foi agradecer a equipe médica pois eles teriam dado à vida para ela. “Era uma emoção muito grande, eu sabia que aquela melhora era obra de Deus e do esforço daquelas pessoas que sempre estiveram ao meu lado”, afirma com os olhos marejados de alegria e felicidade.
Comum
O médico Alexandre Brito explica que procedimentos de ressuscitação são normais em ambiente hospitalar e vários fatores podem ocasionar paradas respiratórias ou cardíacas. Importante destacar que existe diferença entre ambos os casos.
A parada cardíaca é a parada do coração. Não há transporte de oxigênio para o corpo. Na parada cardíaca, o procedimento mais adequado é a realização da massagem cardíaca externa.
A parada respiratória é a parada súbita da respiração. Com isso, há falta de oxigênio nos tecidos do corpo, principalmente em órgãos vitais, que necessitam de maior quantidade de oxigênio, como o coração e o cérebro.
Alexandre Brito diz que existem relatos de que quando ocorre umas das paradas o espírito sai do corpo e acompanha o que está acontecendo. Acontece um encontro com outros espíritos que dão ordem para a pessoa voltar.
O médico também afirma que já passou por situações onde teria ficado mais de meia hora fazendo massagem cardíaca pela obsessão em trazer de volta o paciente. “Existe um sincronismo entre toda a equipe médica. Enquanto alguém massageia, outro ventila e outro aplica medicação”, argumenta Brito.
Alexandre enfatiza que do ponto de vista médico não vê absurdos nos relatos dos dois pacientes dessa reportagem pois retornar de uma parada cardíaca ou respiratória é normal.
Outra situação que também acontece mais do que se imagina é a Catalepsia.
A catalepsia é uma condição, na grande maioria das vezes, transitória, na qual o paciente apresenta uma incapacidade total para mover os membros, a cabeça ou até falar. Em alguns casos, os eventos de catalepsia podem ser confundidos com a morte, pois a respiração também é afetada.
Ele finaliza dizendo que conhece pessoas que mudaram a vida após passar pelas situações vividas por dona Maria e Gilmar. “Os pacientes que voltaram da morte passaram a ajudar outras pessoas, mudaram o estilo de vida radicalmente. Alguns que sabem que morreram, a partir do que houve passaram a dar valor a coisas que não costumavam dar muita importância”, aponta Brito.