ESPECIAL - Na seca, fronteira Brasil-Bolívia mostra outros encantos – Por Montezuma Cruz

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Foto: Divulgação

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O entardecer na margem direita do rio é um dos retratos do cotidiano dos habitantes da regiao fronteiriça à Bolívia/M.Cruz

GUAJARÁ-MIRIM – Quase no fim da tarde a conversa está animada no barco de seu Jaime, amarrado por uma corda no barranco próximo à Associação dos Canoeiros. Ele e os amigos falam do cotidiano, da travessia, do excesso de areia e dos sedimentos que o Rio Mamoré carrega. Relembram ainda o caso da criança pobre engolida por um jacaré faminto a trezentos metros dali.
 
Sob o brilho dos raios do sol o Mamoré mostra sua imponência. Mesmo na atual fase de estiagem, o rio permite a navegação regular de pequenas embarcações. Afinal, neste canto da Amazônia Ocidental só chegam navios da Marinha Brasileira, especialmente os que trazem operações de saúde. Outro dia o navio “Osvaldo Cruz” ancorou nas duas margens fronteiriças ao Brasil e à Bolívia, atendendo a população carente.
 
Nesta sexta-feira, seu Jaime limpou um barquinho antigo para fazer um passeio familiar previamente combinado. Ao redor, piabinhas saltam para devorar farinha e restos de frutas jogados por pescadores e meia dúzia de visitantes brasileiros e bolivianos.
 
 
Encontro diário
 
No galpão ao lado da modesta sede dos canoeiros, ao lado da capela de São Pedro e São Paulo, um grupo de homens ouve o locutor Eliés Passos Parada, da quase cinqüentenária Rádio Educadora AM, cujo programa atende aos pedidos de música dos ouvintes da cidade e de rbeirinhos, seringueiros, farinheiros e pescadores do Alto, Médio e Baixo Guaporé. A emissora recebeu equipamentos novos, incluindo um transmissor e brevemente trocará a sua torre.
 
– Nasci aqui perto, em Montecristo, gosto muito de sentir como vive a nossa gente – ele diz. Eliés bate o ponto todos os dias nos barcos e na sede da associação. Ali capta há 21 anos todo o cotidiano ribeirinho. Seus programas “Brasil caboclo” (5h às 6h45), de segunda-feira a sábado, e “Educadora sertaneja” (às 8h30 e às 22h30), de segunda a sexta aceitam pedidos de música e têm utilidade pública, transmitindo recados, avisos públicos e até conseguindo remédios para pessoas doentes.
 
A estiagem no Vale do Guaporé não é tão desoladora. Ela tem os seus encantos. São gestos simples os responsáveis pela felicidade dessa gente, conforme demonstra dona Maria Inês Almeida, ao preparar frango e peixe numa barraca para servi-las aos que vêm de longe, trazendo mercadorias para vender na feira e no mercado. 

 

 

 

Praia de água doce, numa das curvas do Rio Mamoré: opção de lazer deve durar até o próximo período de chuvas 

 
Antes ou depois da praia
 
Um quilômetro adiante, atrás do Clube Lage de Pedra, percebe-se a correnteza entre pequenas rochas. É um local aprazível para a pesca. Pouco mais de cem metros à direita, uma pequena praia recebe meia dúzia de freqüentadores na quarta-feira.
 
Contam que aos sábados e domingos o espaço – menos de 500 metros quadrados – fica apertado para receber um número dez vezes maior de banhistas. Enquanto durar a estiagem haverá praia de água doce. Antes ou depois da praia, experimente beber um copo de chicha (refresco feito milho seco, moído e cozido) no “Canarinho”, lanchonete tradicional próxima ao Museu Histórico, atualmente fechado.
 
No “Canarinho” o freguês também encontra refrescos de sinini (graviola), patiu (maracujá), palta (abacate), saltenha (salgado assado com recheio suculento), quépi (quibe) e pastéis de queso (queijo), pollo (frango) e carne.
 

A clientela do proprietário Randolfo Pinto Romero é formada há 20 anos por brasileiros e bolivianos que cruzam as águas do rio e fazem do seu estabelecimento um ponto de encontro.

"Solteiro" vende churrasquinho e conta histórias há quase 40 anos no mesmo ponto, no centro de Guajará-Mirim / M.Cruz
Comer saltenha é algo imperdível para quem vem a Guajará-Mirim no verão ou no “inverno amazônico”. Vendidas a R$ 1,50, servidas com guaraná “Parecis” (fabricação local), com o “Tuxaua” (de Manaus), ou com sucos diversos, ela pode ser servida junto com a bem preparada tapioca, vendida pelo mesmo preço.
 
Há também o massaco de banana da terra verde ou de macaxeira (banana ou macaxeira cozida, socada no pilão junto com charque frito e queijo) no café da manhã. Verdadeiro manjar, se consumido na ótica do bom paladar de quem quer conhecer costumes fronteiriços.
 
Conselho da jornalista Ana Maria Mejia, nascida em Guajará-Mirim e atualmente morando em Brasília: vá cedo ao mercado, para ser bem servido. Ou se convide para alguma reunião familiar, avisando com antecedência do desejo de provar as iguarias.
 
Na antevéspera de completar 40 anos no mesmo ponto na Avenida da Constituição, Cristiano de Abreu Viana Soares, 74, o Solteiro, construiu um telhado para melhor receber a freguesia. Atualmente ele fornece marmitex com arroz, mandioca e o seu tradicional espetinho de carne assado na brasa.
 
Paraibano de Pombal, ele atende a semana toda. Provocado, conta alguns fatos de quando chegou à região, procedente de Manaus, a maioria deles a respeito de agruras de passageiros em ônibus nas estradas barrentas da região amazônica ocidental nos anos 1970 e 80.
 
– Uma vez me pediram para cozinhar quatro galinhas. O ônibus levava uns 40 passageiros. Ficamos umas 15 horas no atoleiro. O povo comeu que só e me agradeceu – recorda.
 
Quem visita Guajará-Mirim, não vai às suas lanchonetes, nem conhece o Solteiro, vem à fronteira em vão. Perde o sabor e a alegria de comer bem, ouvir histórias e conhecer pessoas.

 

 

 

Em Guayaramerín é comum encontrar crianças nas ruas e nos estabelecimentos, cuidando da venda de pães para os pais

Pães e tortilhas em cada esquina
 
GUAYARAMERÍN, Beni, Bolívia – O retrato de dois povos unidos também pela culinária e por alimentos feitos artesanalmente está aqui, a 362 quilômetros de Porto Velho, capital rondoniense. Separada e unida pelo Mamoré, Guayaramerín, 38 mil habitantes, sustenta-se da economia de zona de livre comércio, onde se vende eletroeletrônicos, roupas, louças, tecidos e uma quinquilharia de produtos fabricados em países asiáticos e dos Estados Unidos.
 
Costumes culturais e de culinária se misturam. Melhor dizendo-se: associam-se ao jeito de fazer e aos paladares mais exigentes. Ambulantes montados sobre duas rodas circulam pelos bairros, oferecendo seus produtos. Também vendem nas bancas fixas, onde se troca dinheiro e informações diversas.
 
Guayaramerín situa-se a uma distância de 93 quilômetros de Riberalta e 1.115 km de Trinidad, cidade com vôos nacionais. Para desembarcar na sua porta de entrada, embarque numa catraia, no terminal fluvial de Guajará-Mirim. A passagem custa R$ 4.
 
Se no lado brasileiro se destacam bancas de tacacá, de sanduíche, de sorvete e uma praça de alimentação a céu aberto, em Guayaramerín as bancas se espalham pelas praças. Meninos e meninas oferecem em cestos de madeira ou de palha pães, empanados, tortillas, cuñape e refrescos.
 
Dica importante para quem vem pela primeira vez a este lugar: chegue pelas quatro horas da tarde no mercado municipal. Ali, as mulheres comandam os negócios de comida. Interessante e preferidos são os rellenõs – tripa cozida e recheada com uma mistura de arroz e carne moída, servida com yuca (macaxeira). Beba: mocochinche (refresco feito com pêssego seco), chicha e qualquer outro refresco de fruta da época.(M.C.) 
 
DE ONDE VEM
 
O rio Mamoré é boliviano-brasileiro. Nasce na confluência dos rios Chapare e Mamorecillo, entre os departamentos de Santa Cruz e Cochabamba, 24 km ao sul da foz de um de seus grandes afluentes, o rio Grande. Com o Rio Beni forma o Rio Madeira no município de Nova Mamoré. O rio corre na direção norte em todo seu percurso, a maior parte deste em território boliviano. 
 
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