Um inventário com cinqüenta e oito páginas, onde estão relacionadas todas as peças do acervo do Museu da Estrada de Ferro Madeira Mamoré é o ponto de partida para a confirmação de um suposto furto de peças históricas da “ferrovia do diabo” e devidamente abafado pela prefeitura municipal de Porto Velho, responsável legal pela guarda do patrimônio histórico.
Porto Velho, 14 de novembro de 2008. Por volta de 10hs da manhã, entrou na 1ª Delegacia de Policia na região central da capital, Nildete Maria de Arruda Galão, 48 anos, servidora pública municipal, lotada na Fundação Iaripuna. Esbaforida e visivelmente nervosa, informou que pessoas “ignoradas” furtaram do pátio da Ferrovia, vinte parafusos de bronze 1/8 de 3mm e duas chapas de bronze.
A Polícia Civil registrou a ocorrência policial sob nº 4185/2008 e encaminhou ao Sevic (Serviço de Investigação e Captura) para investigação, sendo programada uma oitiva de comunicante para maiores esclarecimentos.
Seria um furto simples se não existisse a possibilidade da ocorrência relatada não ser a expressão da verdade, tendo o furto acontecido também no porão do prédio que abriga as peças do museu da EFMM e não somente no pátio da destruída praça da ferrovia.
TRANSPORTANDO DE QUALQUER JEITO
Vale ressaltar que em agosto de 2007, há 22 meses, os dois principais galpões que integram o complexo da Estrada de Ferro Madeira Mamoré foram interditados para serem reformados. Num deles, funcionava o Museu da EFMM. Para a reforma todas as peças do acervo histórico foram retiradas, sendo levadas para um depósito no porão de um prédio da Marinha, um ambiente
inadequado e considerado insalubre.
Na época, o transporte foi feito de forma irregular, em total desacordo com as normas internacionais de deslocamento de peças históricas. Na carroceria de madeira de um caminhão, amontoadas como se fossem tralhas velhas, a Fundação Iaripuna levou parte da história do Estado para um ambiente fechado, com muita poeira, sem climatização ou cuidados específicos.
Móveis (cadeiras, mesas, cristaleiras, camas, escrivaninhas e estantes), utensílios domésticos (pratos, xícaras e talheres), maquinaria leve (máquinas de escrever, de calcular, relógio de ponto e lampiões) e maquinaria pesada (macacos, empilhadeira, cofres, guincho, etc..) ficaram acondicionados no porão.
Procurado pela reportagem na época do translado,o presidente na época da Fundação Iaripuna, o músico Julio Yriarte, usando de sarcasmo e ironia disse o ideal seria “pegar cada peça, um parafuso e colocar numa caixinha com feltro, fechar e transportar assim”.
EMPRESTANDO O PORÃO
No oficio 275/2007 do gabinete do prefeito de Porto Velho, professor Roberto Eduardo Sobrinho, datado de 11/06/07 para a Marinha do Brasil, a PMPV pedia a cessão pelo regime de “permissão de uso” por um prazo de oito meses do andar superior e inferior do
Galpão 3 para acomodação do Museu da EFMM enquanto era feita a reforma dos outros galpões.
No seu oficio, Sobrinho destacava que pela “dimensão de importância nacional, por si só, um elemento de divulgação desta localidade no contexto mundial” a Prefeitura e o IPHAN ensejavam que o museu ficasse aberto ao público durante o período de obras.
Para convencer a Marinha, o prefeito argumentou que seria de sua “total responsabilidade a reforma necessária do galpão, incluindo os custos decorrentes, estimados em mais de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), bem como as medidas necessárias ao controle, vigilância e administração deste patrimônio”. Passados quase dois anos, nenhuma reforma foi realizada, nenhuma vigilância foi contratada e surge a real possibilidade de peças históricas terem sido furtadas.
BOCA QUENTE
O galpão onde está todo o acervo do Museu da EFMM fica ás margens do Rio Madeira, onde está localizado o porto da Delegacia Fluvial de Rondônia. No perímetro, a região portuária da cidade, com os bairros do Cai N’água e Vila Miséria e suas diversas “bocas” de venda de crack e merla. Dezenas de viciados se utilizam do prédio onde funcionava a oficina da Madeira Mamoré para o consumo de droga. Com a falta de vigilância, os “noiados” mandam no local.
O prédio da Marinha tem os fundos da construção voltada para um matagal que divide a área oficial do território do tráfico. As janelas do porão onde estão acomodadas as peças do acervo possuem grades, assim como numa prisão. Numa destas janelas, um ladrão profissional ou um reles viciado em busca de recurso para sustentar o vicio serrou as grades e entrou no “museu” improvisado da
Prefeitura de Porto Velho. No intuito de evitar novos assaltos, Marinheiros colocaram um tapume de compensado na janela arrombada (foto ao lado)
Apesar da prática internacional recomendar a imediata divulgação do roubo de bens culturais, a Prefeitura de Porto Velho não se manifestou de pronto sobre o que pode ser um dos maiores roubos de peças do Museu da EFMM. Para piorar, ninguém da PMPV apareceu pelo local para tomar a iniciativa de reverter a situação delicada.
FUNDAÇÃO IARIPUNA
Em contato com o atual presidente da Fundação Iaripuna, Ataídes dos Santos Lopes, veio a informação de que o mesmo não tinha conhecimento de nenhum furto.
“Não estou sabendo de nada. Pela data, se houve o furto foi na gestão do Júlio” se referindo ao músico JúlioYriarte, boliviano naturalizado brasileiro e antecessor de “Tatá” na presidência da Iaripuna.
Nildete Maria de Arruda, a servidora pública que fez o registro policial de furto, segundo informação do presidente da Iaripuna encontra-se viajando, não podendo ser contatada para dar sua versão dos fatos relacionados no Boletim de Ocorrência.
De acordo com oficio 061/2009 do gabinete do presidente da Fundação Cultural, datado de dois de março do corrente ano, apenas oito pessoas possuem autorização para entrar no galpão, sendo: o próprio presidente “Tatá”, a vice Berenice Perpetua Simão e os servidores Francisco Gregório da Silva, Mário Antonio Lopes da Silva, Francisco das Chagas Silva, Nildete Maria Arruda Galão,
Michele Souza dos Santos e Osvaldo Reis.
Sobre o desacordo do contratado com a Marinha, especificamente na questão da vigilância, Tatá disse que o ideal seria ter “cinco” vigilantes cuidando do praça, porém nenhum segurança cuida do patrimônio do Museu. Ainda de acordo com Tatá, nenhuma auditoria foi feita no Museu, cruzando as peças lá depositadas com o inventário oficial do Museu.
POLÍCIA CIVIL
Na primeira delegacia de policia da capital, a investigação pouco avançou. Ninguém foi inquirido, os parafusos não foram localizados e o inquérito encontra-se parado. De acordo com um agente do Sevic, furtos de peças da Madeira Mamoré são constantes, com turistas, artesãos e populares recolhendo pedaços da história rondoniense como “souvenir”. “Se você fizer uma foto do local e depois de seis meses voltar lá, verás que diminuiu os objetos retratados” afirma o policial.
Há cerca de 10 anos, foi furtada uma grande corrente e um macaco do pátio da EFMM, sendo recuperado pelos agentes num ferro-velho da avenida Rio Madeira. “Se não houver comunicação com descrição detalhada, no mais breve espaço de tempo do furto, fica difícil localizar as peças” afirmou o agente que não quis ser identificado pela reportagem.
IPHAN
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN/RO), através de seu delegado responsável, Beto Bertagna disse que a Fundação Iaripuna é a responsável por todas as peças do galpão, desde sua retirada assim como o cuidado e cadastro.
“A fundação responde por todo dano que aconteça com qualquer peça do galpão” afirmou Beto Bertagna, ressaltando que já procurou a Fundação para alertá-la sobre sua responsabilidade com todas as peças dos dois galpões.
Sobre o possível furto após arrombamento do porão da Marinha, Beto disse desconhecer se houve alguma subtração, alegando que só uma auditoria para confrontar os dados do inventário com as peças ali depositadas pode apurar o possível roubo.
Em relação a responsabilidade, Bertagna esclareceu que “A prefeitura conseguiu num acordo com a 17ª Brigada de Infantaria de Selva a cessão de uso por 20 anos, sendo a única responsável pela guarda e conservação das peças do museu” afirma Bertagna.
"Por recomendação do MPF – Ministério Público Federal foi feito no inicio do ano uma vistoria nas peças para avaliar possíveis danos causados por acomodação inadequada” disse o delegado do Iphan, sendo constatado que muitas peças tinham resquícios de cocô de pombo, assim como danos causados por água de chuva, porém referentes a período anterior a colocação das peças no porão da Marinha, quando ainda estavam no antigo prédio. Na época do transporte ficou constatado que apenas um tampo de vidro teria se quebrado na mudança de prédios.
“Existe muitos boatos sobre furtos de peças e acreditamos que uma investigação séria pode apurar o que de fato houve” finaliza Bertagna. De acordo com o “Inventário do Acervo do Museu da Estrada de Ferro Madeira Mamoré”, hoje constam catalogadas 475 peças, grande parte no depósito da Marinha.
O desmonte do museu faz parte de um projeto desenvolvido pelo departamento de arquitetura da Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA), sob a supervisão do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O Iphan também possui um Banco de Bens Culturais Procurados, devendo ser comunicado pelos responsáveis em prazo hábil para o inicio da busca do patrimônio roubado.
DESCASO OU INCOMPETÊNCIA
Com a comprovação do arrombamento do prédio e nenhuma atitude fiscalizadora por parte do executivo municipal, fica claro o descaso da Prefeitura Municipal de Porto Velho para com o patrimônio histórico de Rondônia.
Isso sem mencionar o atraso de mais de um ano na entrega do novo museu, além de terem transformado a praça (pátio) da EFMM numa grande lixeira. O Jornal Rondoniaovivo entregou cópias dos documentos apurados ao Ministério Público Federal, no intuito do órgão tomar uma decisão célere em defesa da História dos nossos pioneiros.
Pela “displicência” do prefeito Roberto Sobrinho no trato do patrimônio histórico e embasado no seu ofício endereçado a Marinha do Brasil, onde alegava que era o responsável pela vigilância das peças, comprovando-se o furto, o chefe do executivo municipal deve ser processado pelo MPF por improbidade administrativa.