Política em Três Tempos
Por Paulo Queiroz
1 – CASO BOLIVIANO
Vá-se acostumando o leitor com o noticiário alarmista acerca de furiosas manifestações contra o governo do presidente Evo Morales, aqui do lado, na outra margem dos rios que nos separam. O que está acontecendo na Bolívia é a repetição farsesca de vários episódios registrados em diferentes países América Latina, em épocas diversas, inclusive no Brasil (lembre 1964), sempre que as elites sentiram-se ameaçadas em seus privilégios seculares. É a roda da história mais uma vez em movimento. São as iradas reações aos explorados do mundo sempre que tentam romper as amarras da opressão.
Nunca é demais lembrar que a Bolívia, desde a colonização espanhola, tem vivido uma impiedosa história de exploração dos povos indígenas e, após a República, das classes sociais mais desprezadas - como os operários e camponeses - por umas poucas famílias que se revezaram no poder e utilizaram o país em benefício próprio e de pequenos grupos. Em pleno século XXI a iniciativa privada nas mãos desses pequenos grupos ainda tem poder suficiente para deflagrar manifestações como as que estão sendo noticiadas e, assim, tentar desestabilizar tentativas de governo que contrariam seus interesses.
Não por acaso as atuais manifestações estão concentradas na região do Chaco boliviano, onde as maiores reservas de gás do país fazem fronteira com Brasil, Argentina e Paraguai. Há bloqueios nos departamentos (Estados) oposicionistas de Tarija, Beni, Pando, Chuquisaca e Santa Cruz. Os governadores desses departamentos lideram os protestos contra Morales. No centro da questão estão a nova Constituição proposta pelo presidente boliviano e um programa de pensão aos idosos do país, que conta com verbas obtidas da renda do gás.
Os últimos distúrbios começaram depois que o departamento de Tarija, onde se concentra a produção de gás (85% das reservas), se opôs à decisão do governo de reduzir o repasse das verbas do principal imposto petrolífero. Morales anunciou a medida para aumentar a pensão dos idosos.
2 – POVOS INDÍGENAS
Quanto à Constituição, a primeira coisa que se depreende do caso boliviano é que a Assembléia Constituinte teria sido impensável sem a pressão de inúmeros movimentos indígenas, camponeses e populares, até então excluídos da vida política do país. Razão pela qual, conste que o documento representa a tentativa mais decidida de subverter as dinâmicas de desigualdade socioeconômica e de exclusão cultural de amplos setores da sociedade boliviana, começando pelos integrantes dos povos indígenas, que representam em torno de 60% da população.
Como se recorda, em dezembro do ano passado, uma Assembléia Constituinte aprovou, na cidade de Oruro, uma nova Constituição para a Bolívia. Quando tudo parecia indicar que o processo constituinte ficaria definitivamente bloqueado, 165 dos 255 membros da Assembléia enfrentaram o boicote das forças conservadoras e conseguiram levar o texto adiante. Quase todos os artigos foram aprovados por dois terços dos presentes. Somente um, relacionado com os latifúndios, não obteve o consenso previsto na lei de convocatória da Constituinte.
A característica central do texto constitucional, no entanto, é o desejo de articulação política de uma sociedade culturalmente mais diversa e socialmente menos desigual. Reflete a complicada tentativa de garantir a autodeterminação dos mais vulneráveis – os povos e comunidades indígenas – e de deslegitimar ao mesmo tempo as tentativas secessionistas dos mais poderosos – as oligarquias dos ricos departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija.
Depois do referendo revogatório do dia 10 de agosto, em que Morales teve seu mandato confirmado, o presidente vem tentando conseguir apoio para um referendo decisivo sobre a Carta Magna. Morales obteve 67,4% dos votos, com grande aprovação até nas regiões opositoras, e resolveu convocar para dezembro os referendos necessários para promulgar a nova Constituição - um deles limitará o tamanho de latifúndios, tema sensível nas férteis terras das regiões conflagradas.
3 – MODOS SEDICIOSOS
Mas eis que a violência irrompe. Agrupadas nos comitês cívicos, como já denunciara há meses o senador boliviano Antonio Peredo Leigue, as elites e as prefeituras opositoras parecem convencidas de que chegou o momento de partir para o ataque. Não escondem as suas intenções. Um prefeito chamou seus antigos camaradas militares para “salvar a democracia”, repetindo a proclamação que justificou tantos golpes América Latina afora, aí incluídos alguns que resultaram nos períodos mais aterradores do Continente, como os de 1964 no Brasil e golpe de Pinochet no Chile.
A violência é sempre uma ação realizada por grupos de poder. Tem sua origem, sempre, a partir de um setor social, trabalhista, regional, étnico ou religioso que tenha alguma demanda insatisfeita. Os grupos sediciosos incentivam a reclamação, incitam dar-lhe um caráter de urgência, patrocinam e financiam a mobilização e provocam o governo, para que haja uma repressão aos grupos mobilizados. Procuram sempre que haja um, dois ou mais mortos. E, então, criam o coro que, invariavelmente, compara os governos com as mais cruéis ditaduras.
Um morto, dois mortos, só agora já são 70. O governo retira as forças policiais, procurando acalmar a situação E, no entanto, os grupos violentos atacam em vários pontos e queimam veículos e escritórios. Em Santa Cruz, os sediciosos e seus partidários utilizam bananas de dinamite em diversos locais e, de noite, invadem os escritórios de repartições públicas, quebrando vidros e destruindo móveis. Um tal comitê cívico declara guerra, culpando o governo pela violência por eles deflagrada e convoca uma assembléia para informar, a seus partidários, que não haverá paz enquanto o governo atual continuar no poder.
No entanto, o apoio popular a Morales manifestado no referendo do mês passado parece confirmar as palavras finais de Tupac Katari, líder aymara de uma revolução democrática no séc. XVIII contra o colonialismo espanhol. Antes de ser morto e esquartejado, profetizou: “A mim somente podeis matar; mas amanhã voltarei e seremos milhões”. Pois!