ARTIGO - INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI ESTADUAL Nº 1788, de 31/10/2007 - Por Juacy Santos Loura Jr.
1. – INTRODUÇÃO
Desde o final do ano passado, inúmeras entidades representativas das categorias de servidores públicos estaduais, vêm alertando a opinião pública sobre o “calote” instituído pela Lei Estadual 1788, de 31 de outubro de 2007, que definiu os créditos de pequeno valor, para os fins previsto no art. 100, § 3º da Constituição Federal e art. 87 dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição Essa indigitada norma inseriu no mundo jurídico a redução dos pagamentos das obrigações do Estado de Rondônia, baixando significativamente os valores para pagamento das Requisições de Pequeno Valor, de 40 (quarenta) para 10 (dez) salários mínimos, ou seja, antes seria o equivalente a R$ 16.600,00 (dezesseis mil e seiscentos reais), para os atuais R$ 4.150,00 (quatro mil cento e cinqüenta reais), levando-se em conta o novo valor do salário mínimo de R$ 415,00 (quatrocentos e quinze reais).
Pensamos que a referida Lei é totalmente desarrazoada trazendo em seu bojo matéria equivocada, pois além de reduzir drasticamente o valor do pagamento das chamadas RPV’s, ainda determina que sua aplicação seja imediata, isto é, deve ser aplicada aos processos em andamento que estão já em fase de execução, os quais depois de ficarem vários anos tramitando nas varas de fazenda pública, Tribunal de Justiça ou até mesmo nos Tribunais Superiores, agora, já na fase, digamos, final, têm de se subsumir ao teto fixado pela nova Lei, sob pena, de em não concordando os Autores (credores do Estado) com o valor de 10 (dez) salários mínimos, entrarem na infinita fila dos famigerados precatórios e daí deixarem o recebimento para seus herdeiros ou receber o que fazem jus, quando estiverem na melhor idade.
Sem dúvida que a Lei em comento padece de inconstitucionalidade por ferir o princípio da razoabilidade da Administração Pública (que mesmo não constando expressamente do caput do artigo 37 da Carta Maior, já foi entendido por inúmeros julgados do Excelso Pretório , como princípio implícito), bem como por trazer em seu bojo artigos de direito material, os quais vêm sendo pleiteado pela Procuradoria do Estado de Rondônia para aplicação imediata, como se fossem normas de direito processual, o que pode ser entendido como outro ferimento à Constituição, já que ao Estado Federado não é dada a autonomia de legislar sobre questão processual (vide artigo 22, I da CF,) visto que a referida lei impõe um limite processual e temporal de incidência.
2. – RAZOABILLIDADE
Antes, de simploriamente fazermos um apanhado da inconstitucionalidade da referida lei estadual, necessário trazer noções perfunctórias do que vem a ser o princípio da Razoabilidade.
Esse princípio tem conceito jurídico indeterminado, flexível e variável no tempo e no espaço. Consiste no proceder com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a prática do ato.
Na seara do Direito Administrativo, o princípio da razoabilidade tem sido utilizado como forma de limitar o exercício da competência discricionária do administrador. Este, quando estiver desempenhando a função pública de concreção do direito, dispõe de poderes administrativos para melhor atender às conveniências da administração e às necessidades dos administrados (leia-se: necessidades coletivas). A discricionariedade, como um desses poderes instrumentais, consiste na liberdade de ação dentro de critérios estabelecidos pelo legislador. Assim, se surge da norma certa margem de opção para o agente efetivar a vontade abstrata da lei, a autoridade deverá adotar a melhor medida para o atendimento da finalidade pública.
Deve ser dito que as atitudes inadequadas, incoerentes, desequilibradas e desprovidas de fundamentação não podem estar abalizadas pelo princípio em questão; somente a título de exemplo podemos citar o caso em que determinado servidor público é removido de uma repartição para outra, tal ato diz respeito a questões relativas à necessidade do serviço. Contudo, se, posteriormente, for comprovado que a mudança de lotação do servidor pela autoridade superior foi resultado de perseguição política ou qualquer outro desalinhado com os princípios da administração pública, essa remoção não foi utilizada dentro de critérios aceitáveis em razão das circunstâncias, sendo incompatível com o princípio da razoabilidade.
Não há, no caso exemplificado, qualquer relação de adequação ou de proporcionalidade entre o motivo e a finalidade, de modo que o ato administrativo de remoção poderá ser objeto de invalidação pela própria administração ou pelo Judiciário, no entanto, nessa hipótese deve haver provocação do interessado.
A doutrina brasileira, de igual sorte, fundamenta o princípio em tela, Segundo o sapiente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello , razoabilidade:
“enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.”.
Indene de dúvidas, que referido princípio veda o excesso e as atitudes incongruentes das autoridades públicas no exercício da função estatal.
3. - RAZOABILIDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
Como dito no intróito, em que pese a razoabilidade não constar expressamente no caput do artigo 37 da CF/88 como um dos parâmetros norteadores da atividade administrativa, a razoabilidade está prevista em várias Cartas Estaduais e Leis Orgânicas Municipais, citando-se como exemplo: as Constituições de Minas Gerais (art. 13), São Paulo (art. 111), Sergipe (art. 25) e Tocantins (art. 9º), e na Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte (art. 15).
Conquanto, é tema já solidificado pela doutrina dominante e jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, que consideram o princípio jurídico da razoabilidade como implícito no artigo 37 da Carta da República, não só para dar legitimidade aos atos administrativos, mas também para pautar na elaboração das regras jurídicas a cargo do Poder Legislativo.
4. - DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI ESTADUAL Nº 1788/2007
A RPV é sem dúvida alguma um forte estandarte de eficácia da atividade jurisdicional brasileira, atendendo à garantia da razoável duração do processo instituída no inciso LXXVIII do art. 5º da CF pela Emenda Constitucional denominada como “reforma do Judiciário”, a EC nº 45/2004 .
Considerando que entes estaduais e municipais passaram a ser obrigados a satisfazer em curto prazo as condenações judiciais, estes se apressaram em editar normas estabelecendo, no âmbito de sua competência, valores geralmente inferiores àqueles previstos no art. 87 do ADCT para efeitos de dívidas de pequeno valor, atitudes que sem dúvida, prestam um verdadeiro desserviço para a efetividade da atividade jurisdicional brasileira, atuando em prejuízo aos pequenos credores da Fazenda Pública, retardando a satisfação dos débitos, mitigando exageradamente o verdadeiro espírito da Constituição Federal para que os pequenos valores fossem saldados o quanto antes.
A autonomia legislativa outorgada aos Estados e Municípios em razão de delegação expressa inserida no § 5º do art. 100 da CF/88 e no caput do art. 87 do ADCT deixa evidente a possibilidade de mudança do patamar ali inserido, para fixarem valores diferentes daqueles constantes dos incisos I e II do art. 87, para efeitos de RPV.
Portanto, mostra-se como legítima a autonomia estadual e municipal para editar normas no âmbito de sua competência para definir os limites dos débitos que devem ser considerados como de pequeno valor, conquanto, a edição dessas normas não pode olvidar a situação real financeira do ente estatal, bem como a capacidade de recebimento de contribuição e a própria arrecadação desse ente.
Todavia, mesmo levando em conta a legitimidade estadual e municipal para fixar valores de RPV, não pode o legislador, em nosso pensar, fazer lei ao seu próprio alvedrio, fixando valores que ao seu bel prazer, entenda como necessário para o pagamento dos Requisitórios de Pequeno Valor, pena de ferir de morte um dos princípios norteadores da Administração Pública, qual seja, da Razoabilidade.
No caso concreto em nosso Estado, mesmo depois das EC’s 30/2000 e 37/2002 e a Lei 10.259/2002, que fixaram as Requisições de Pequeno valor em 60 (sessenta) salários mínimos para a União, 40 (quarenta) salários mínimos para os Estados Federados e o Distrito Federal e 30 (trinta) salários mínimos para os Municípios; e fugindo a essa regra em flagrante contramão, quando já passados mais de cinco anos da fixação dos índices pelo Constituinte reformador, vem o Estado de Rondônia e edita a Lei nº 1.788, de 31 de outubro de 2007, definindo novo patamar para os créditos de pequeno o valor, ou seja, irrisórios 10 (dez) salários mínimos, enquanto, repita-se, a norma constitucional havia estabelecido um limite correspondente a 40 salários mínimos.
Disso se extrai que a Constituição não delega no § 5º, do artigo 100, uma liberdade discricionária de maneira que a alteração nos valores das dívidas de pequeno valor pode ser fixada segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público, observando o princípio da proporcionalidade, razoabilidade, da simetria e o princípio federativo, mas os entes locais se sujeitam à teleologia constitucional, não lhes sendo lícito fixar valores ínfimos que poderiam representar supressão do próprio instituto do Requisitório de Pequeno Valor, subvertendo daí o instituto (do pequeno valor) criado pelo Constituinte.
A par ainda dos novos horizontes jurídicos, em especial pelo estabelecido no § 5º, do art. 100 da CF, não quer dizer, tampouco significa que a Carta Magna concedeu, digamos, um título de crédito assinado em branco às entidades de direito público estadual e municipal, para definirem, como quiserem, o limite dos créditos de pequeno valor.
Podem fazê-lo, no entanto, devem sopesar a sua própria realidade financeira e justificar o porquê da limitação a qual será objeto da lei.
Nesse passo, mostra-se como inconstitucional a Lei 1788/2007, muito porque, desde a edição da EC 37/2002 (que fixou em 40 SM os débitos de pequeno valor dos Estados e do Distrito Federal), a realidade financeira do Estado de Rondônia é outra, muito diferente do que era há 10 (dez) anos atrás.
Ademais, necessário citarmos, tal qual declinado numa brilhante decisão do I. Juiz da 1º Vara da Fazenda Pública de Porto Velho, Dr. Alexandre Miguel, quando rejeitou a aplicação da Lei 1788/2007 num dos seus milhares processos, assim manifestando-se:
“analisando as últimas leis de diretrizes orçamentárias e as próprias leis orçamentárias, editadas sob a égide da mudança constitucional, verificam-se um exponencial crescimento da receita pública [4], e a previsão legal de suplementação orçamentária para pagamento de indenizações e afins, decorrentes de decisões judiciais, além da criação de reserva de contingência [5].
O referido Magistrado foi ao cerne da questão no que toca a razoabilidade da Lei 1788/2007, visto que editada baixando os valores da RPV’s, enquanto a situação financeira do Estado de Rondônia é outra, recorde e mais recorde de arrecadação.
Impossível deixar de ponderar sobre notícia veiculada por vários meios de comunicação televisionados, escritos, mas em especial de periódico eletrônico da rede mundial de computadores com o seguinte título: “Arrecadação estadual supera os R$ 142 milhões e bate recorde em janeiro” , se referindo a receita do Estado de Rondônia no mês de janeiro do corrente ano.
Informação que nos deixou impressionado foi à idéia de que a arrecadação da Receita Estadual é maior do que o repasse das verbas federais, evidenciado que o Estado de Rondônia tem dinheiro em caixa e condições de pagamento de seus débitos judiciais, eem especial os de pequenos valores, vejamos tópico na noticia referenciada a respeito do alegado:
“...O orçamento do estado hoje é de R$ 3,3 bilhões, sendo que R$ 1,4 bilhões é de verbas federais, incluindo o Fundo de participação dos Estados (FPE). Isso quer dizer que a arrecadação estadual tem sido maior que os repasses federais e representa mais de 50% do orçamento geral do estado. “Esse aumento na arrecadação é graças ao desempenho de empresas instaladas no estado e que mantêm a contribuição em dia”, argumenta José Genaro Andrade, secretário da Sefin...”
Como dito acima, a Carta Superior estabeleceu de forma provisória o valor de quarenta salários para os Estados e trinta salários mínimos para os Municípios, como de pequeno valor, podendo se extrair, numa interpretação teleológica, que esses patamares são considerados valores médios, que poderiam ser elevados ou reduzidos pelos entes estatais em razão de sua peculiaridade. Veja, pois que a atuação legislativa está ínsita na aplicação da lei.
Apenas para destacar, nessa atuação legislativa, alguns Municípios e Estados brasileiros, como entendemos ser o caso de Rondônia, não têm observado qualquer linha de proporcionalidade ou razoabilidade, havendo abuso na liberdade legislativa delegada em razão da fixação de valores ínfimos como limites das dívidas de pequeno valor para expedição de RPV. Sendo que com essa postura, os Entes estão ferindo de morte o verdadeiro espírito da lei Maior Constitucional, que instituiu, através do Requisitório de Pequeno Valor, instrumento eficaz da tutela jurisdicional.
Nessa óptica, pensando de forma obtusa, data venia como os legisladores locais e caso se admita que Estados e Municípios têm ampla liberdade para limitar as dívidas de pequeno valor, em qualquer patamar, sem atentar para a proporcionalidade ou a razoabilidade, seremos ultimados a admitir que, numa situação esdrúxula, um Município qualquer pudesse considerar dívida de pequeno valor as importâncias que não superassem R$ 100,00 (cem reais), por exemplo; e que um Estado considere como pequeno valor a quantia de não superior a 1 (um) salário mínimo. Essa é a razão pela qual se deve atentar para a proporcionalidade/razoabilidade.
O alcance, a forma de aplicação e em especial a amplitude das normas jurídicas inerentes e extravasadas pelo Poder Legislativo, que digam respeito a toda coletividade, por si só, demonstra a efetiva adoção de critérios razoáveis como forma de facilitar a sua execução, pois se a lei não é razoável ao prever medidas incoerentes a serem praticadas pelos agentes públicos, como entendemos ser a Lei estadual nº 1788/2007, logo os demais atos decorrentes dela também o serão.
Paradoxalmente, não podemos esquecer-nos do entendimento da ADI 2868 – PI , onde a Corte Constitucional entendeu pela constitucionalidade de Lei do Estado do Piauí que fixou em 5(cinco) salários mínimos as obrigações de pequeno valor para aquele Estado, sendo que não pode se levar como parâmetro a decisão acima para querer daí por diante fixar por baixo os limites para pagamento de pequeno valor.
Lembre-se, ainda, por imperioso, que nesse julgamento não participaram os Ministros Sepúlveda Pertence (atualmente Aposentado) Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Menezes Direito, de modo que em nova apreciação daquele plenário, de matéria atinente a fixação de dívida de pequeno valor para os entes federados, poderá ser revertida à posição anterior, corrigindo-se aquele entendimento que, data vênia, nos parece não ter trazido a melhor solução jurídica da matéria.
Noutro norte, no caso de Rondônia, a realidade financeira vivida atualmente por nosso Estado é totalmente diversa do Estado do Piauí, sendo que a arrecadação de Receitas publica não são comparáveis à medida que Rondônia é o terceiro maior Estado da Região Norte em arrecadação.
Diga-se, que mais de um qüinqüênio se passou (desde a EC 37/2002 até a entrada em vigor da Lei 1788, em 31 de outubro de 2007), e Estado de Rondônia, vinha pagando seus débitos judiciais de pequeno valor no patamar de 40 (quarenta salários mínimos). Desta forma, por qual razão, e porque abruptamente tais débitos (obrigações) despencam para o limite de 10 (dez) salários mínimos? É ai que fica evidente a falta de razoabilidade, visto que não houve justificativa plausível (do Executivo ou mesmo do Legislativo) para a inserção no mundo jurídico de tão draconiana norma.
Apenas a título de argumentação, deve ser dito, aliás, como já foi anteriormente, que o Município de Porto Velho, nossa Capital, paga atualmente 30 (trinta) salários mínimos como quantia de pequeno valor em todos os processos em que foi condenado.
Pergunta-se: Será que Porto Velho tem uma arrecadação maior do que a do Estado de Rondônia?
A resposta é óbvia, pois o Município não arrecada mais que o Estado, realçando ainda mais a falta de razoabilidade na edição da Lei Estadual, deixando evidente, de outro lado que a permanência no mundo jurídico da referida norma, trará prejuízo aos jurisdicionados, como de fato já está trazendo, pois, há casos em que o Tribunal Local, deferiu efeito suspensivo ao Estado de Rondônia, para brecar, até ulterior decisão, os pagamentos de requisições de pequeno valor no patamar de 40 (quarenta salários mínimos), que já estavam na iminência de pagamento, sendo certo que mais uma vez serão os cidadãos que sofrerão inúmeros dissabores, prejuízos, e por certo, serão lesados (pois ou abrem mão de receber 40 SM para receberem 10 SM ou se submetem à fila do precatório), apenas para alimentar ainda mais a fome e a ganância de arrecadação da Receita Estadual.
Não obstante aos argumentos declinados, nosso Tribunal de Justiça, já enfrentou a discussão do princípio da razoabilidade, quando, analisou analisar lei municipal que fixou como pequeno valor, quantia muito inferior ao fixado na Constituição , entendeu não ser razoável o limite na lei fixado.
Ora, não há dúvida, em nosso pensar, que a Lei em questão fere o princípio da razoabilidade, devendo, pois, ser objeto de questionamento por quem de direito (por uma das entidades legitimadas descritas no artigo 103 da CF/88) junto ao Poder Judiciário, para de forma concentrada, ser reconhecida à inconstitucionalidade da norma, por afronta ao principio exaustivamente asseverado.
Enquanto não houver qualquer medida efetiva de discussão da legalidade da referida Lei junto ao Supremo Tribunal Federal, somente cabe aos distintos colegas advogados guerrear contra a aplicação dela mediante pedido de declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 1788/2007, pela via difusa, de forma incidental.
Assim sendo, é notória a inconstitucionalidade da Lei citada, pela falta de justificação quanto aos valores de referência nela contidos, bem como por fugir aos ditames do princípio constitucional implícito da razoabilidade, devendo, o Judiciário de Rondônia, repelir a norma citada e reconhecê-la por imprestável e dissidente aos preceitos da Carta Maior.
5. – DA INAPLICAÇÃO DA LEI 1788/2007 AOS PROCESSOS EM ANDAMENTO
Milhares de processos, pelo próprio regramento nacional que concede prazos mais alargados para os entes estatais, bem como pela procrastinatória conduta desses entes em sempre recorrer, já perduram por vários anos, em tramitação no Poder Judiciário.
Todavia, quando se iniciaram referidos processos, estavam sob a égide do patamar de 40 (quarenta) salários mínimos como referencial de pequeno valor para que o Estado de Rondônia pagasse seus débitos.
Ocorre que muitos desses processos, a partir do final do ano passado, mesmo que já recebidos e despachados pelo Magistrado e estando em fase de execução, neles estão sendo inseridos pedidos da Procuradoria Estadual, no sentido de “fazer valer o artigo 1º da norma epigrafada” para que o Estado pague tão somente 10 (dez) salários mínimos nas RPV’s.
A respeito da matéria, forçoso a transcrição do entendimento contido no trabalho científico do Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Dr. Renato Luís Dresch :
“...Diante da existência de uma infinidade de demandas tramitando no Poder Judiciário, surgem algumas dúvidas sobre a incidência dos novos valores para efeito de RPVs nos processos em curso na data de entrada em vigor das novas leis locais que definiram limites diferentes para determinar as dívidas da Administração Pública consideradas de pequeno valor.
Por isso, é necessário fazer algumas considerações sobre a natureza jurídica das normas locais destinadas a estabelecer novos limites para débitos de pequeno valor.
O sistema normativo brasileiro se divide entre normas de direito material, para regular a conduta das pessoas e os efeitos dos atos e fatos jurídicos, e as normas de direito processual, constituídas de um complexo de princípios e regras que regem o exercício da jurisdição pelo Estado-juiz (confira Antônio Carlos de Araújo Cintra e outros, 2002, p. 40).
As normas de direito material incidem a partir do momento em que ocorre o fato da causa, não podendo reger situações que lhe são precedentes, porque se impõe o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).
O processo civil é o instrumento colocado à disposição do Estado, donde emergem as regras aplicáveis para a reparação do direito material violado, que se faz por meio da atividade jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário.
(...)
Quanto às normas de direito processual, aplica-se a regra tempus regit actum, de modo que,“ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes” (CPC, art. 1.211). Contudo, também devem respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (veja Ernane Fidélis dos Santos, 2006, p. 04), que são garantias decorrentes da Constituição Federal.
Em razão disso, à primeira vista, parece que estaríamos forçados a admitir que as novas normas locais seriam auto-aplicáveis às execuções em andamento. Contudo, a solução não é tão simplista como parece.
Às vezes, é difícil distinguir com nitidez norma processual geral daquela de natureza procedimental, já que ambas regulam o processo. Embora a doutrina não seja muito simpática a essa cisão entre normas processuais e procedimentais, a Constituição Federal fez essa distinção, ao instituir a competência concorrente entre União e Estados para legislarem sobre procedimento (art. 24, XI), enquanto estabeleceu competência federal privativa para editar normas de direito processual (art. 22, I).
Além da separação entre normas de direito material e de direito processual e a subdivisão desta em normas processuais gerais e procedimentais, existem ainda normas processuais que projetam efeitos materiais.
Cândido Rangel Dinamarco (2001, v. I, p. 67) escreve:
Dado que no processo entrelaçam-se o procedimento e a relação jurídica vinculativa de seus sujeitos, entende-se as normas processuais stricto sensu como sendo os preceitos destinados a definir os poderes, deveres, faculdades, ônus e sujeição dos sujeitos processuais (relação jurídica processual), sem interferir no desenho das atividades a realizar (procedimento). Normas procedimentais, nesse contexto, seriam aquelas que descrevem os modelos a seguir nas atividades processuais, ou seja, (a) o elenco de atos que compõem cada procedimento, (b) a ordem de sucessão a presidir a realização desses atos, (c) a forma que deve ser observada em cada um deles (modo, lugar e tempo) e (d) os diferentes tipos de procedimentos disponíveis e adequados aos casos que a própria norma estabelece.
(...)
As leis estaduais e municipais que estabelecem novos limites para os pagamentos das dívidas de pequeno valor são normas de natureza procedimental substancial. Ocorre que a redução dos limites para expedição de Requisitórios de Pequeno Valor não altera o direito material reconhecido e que emanou da sentença prolatada; contudo, a alteração do valor influi na esfera patrimonial especialmente quanto ao modo de satisfação da obrigação. Há repercussão no tipo de procedimento a ser adotado nos atos executivos de cumprimento da sentença, cujos reflexos materiais são evidentes na realização do direito material.
No caso em análise, os novos limites para efeitos de Requisitório de Pequeno Valor não revogam o procedimento em vigor. As novas regras de natureza procedimental com efeitos substanciais produzem efeitos apenas para as sentenças que transitarem em julgado depois da sua edição. O trânsito em julgado constitui o que Chiovenda chama de “contrato processual”, que deve ser respeitado pela lei nova.
Sobre as normas de natureza instrumental com reflexo material, pronunciou-se o STJ no seguinte sentido:
Processual civil. Administrativo. Agravo regimental no recurso especial. Fazenda Pública. Execução não embargada ajuizada após a edição da MP 2.180-35/2001. Lei 9.494/97. Honorários advocatícios indevidos. Requisição de pequeno valor. Inovação de argumentos. Agravo regimental improvido. - 1. As disposições contidas na Medida Provisória 2.180-35/01, por terem natureza de norma instrumental, com reflexos na esfera jurídico-material das partes, somente são aplicáveis aos casos ajuizados posteriormente à sua vigência, ou seja, 24.08.2001.
Hipótese em que a ação foi ajuizada posteriormente à referida data, pelo que é incabível a condenação da Fazenda ao pagamento de honorários advocatícios, conforme art. 1º-D da Lei 9.494/97, acrescentado pela MP 2.180-35/01 (ac. no13 AgRg no REsp nº 795.097-SC, Quinta Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j.em 14.3.2006, in DJU de 24.4.2006, p. 456) (grifei).
As novas regras quanto às dívidas de pequeno valor aplicáveis para o direito intertemporal, embora de natureza procedimental, têm reflexos na esfera jurídico-material, porque influenciam o modo de realização do direto material através da expropriação, razão pela qual as novas leis locais são aplicáveis apenas para as sentenças ainda não transitadas em julgado.
Com o trânsito em julgado, emana o direito adquirido6 para a satisfação do direito substancial com direito de o credor utilizar o procedimento mais célere de acordo com a regra vigente nesse momento. Isso se alinha com a garantia constitucional de duração razoável do processo, que não pode ser suprido por norma processual superveniente editada por uma das partes interessadas na causa.
Com essas considerações, o entendimento que emerge é de que a redução no limite da dívida de pequeno valor instituído por leis locais tem natureza processual-procedimental que projeta efeitos substanciais, razão pela qual não se aplicam para as sentenças já transitadas em julgado na data de sua entrada em vigor, porque a parte possui o direito adquirido ao procedimento mais célere, especialmente quando este não tenha sido suprimido pela nova norma. – grifamos.
Portanto, queda-se evidente pelo entendimento do Ilustre Magistrado, que as disposições da Lei nova que alterou o valor das Requisições de Pequeno Valor, não se aplicam aos processos já em andamento, sob pena de ferir o princípio do direito adquirido do cidadão credor da Fazenda Pública, reconhecido em sentença transitada em julgado.
Corroborando essa tese, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é jurisprudência dominante o entendimento de que a lei local com novos limites para as dívidas de pequeno valor somente se aplica nas execuções de sentença que se iniciaram depois da alteração legislativa, ou seja, para o caso em tela, somente pode ser aplicável a Lei Estadual 1788/2007, para os processos iniciados a partir da entrada em vigor dessa norma.
Com efeito, necessária a colação de arestos do TJMG que lapidam de forma clara a inaplicabilidade da lei nova nos processos em andamento, vênia para transcrevermos:
Apelação cível. Embargos do devedor. Ação de execução por título judicial. Requisição de pequeno valor. Lei nova. Irretroatividade. Recurso não provido.
- 1. A lei nova não pode retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência.
- 2. Assim, as requisições de pequeno valor anteriores à edição da lei local devem observar o limite disposto no art. 87, II, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República.
- 3. Apelação cível conhecida e não provida (Número do processo: 1.0239.05.002485-4/001. Relator: Caetano Levi Lopes. Data do acórdão:14.11.2006. Data da publicação: 15.12.2006).
No corpo do acórdão consta:
Em relação ao direito, é de elementar ciência que, por expressa disposição constitucional, a lei nova não pode retroagir para regência de fatos anteriores ao início de sua eficácia.
(...)
Portanto, afastada a regência da lei local, porque editada após o início da execução por título judicial, impõe-se observar o limite estabelecido no art. 87, II, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República, ou seja, trinta salários mínimos, perante a Fazenda Municipal. A sentença está correta, o que torna mesmo inagasalhável o inconformismo.
E ainda:
Direito administrativo municipal. Execução contra a Fazenda Pública. Lei Federal nº 10.259/2001. Requisição de pequeno valor. Legislação municipal fixando a RPV. Edição após o ajuizamento da ação. Inaplicabilidade. - A jurisprudência deste Tribunal de Justiça tem admitido a aplicação da Lei Federal nº 10.259/2001 nos processos de competência da Justiça Estadual. Tal fato decorre principalmente de a
competência para legislar sobre direito processual civil ser privativa da União. O que foi outorgado aos Municípios e Estados foi legislar sobre o aspecto de direito material da Requisição de Pequeno Valor, ou seja, definir o seu montante diante da aferição da capacidade orçamentária peculiar de cada ente. Não há que se cogitar da aplicação da Lei Municipal nº 3.051/2003 aos processos ajuizados anteriormente à edição dessa lei. Somente a norma de natureza processual tem aplicação imediata aos processos em andamento. A norma que fixa o valor da RPV tem natureza material, tendo reflexo, inclusive, sobre direitos subjetivos do cidadão detentor de crédito representado por título executivo judicial (Número do processo: 1.0073.04.014821-2/001. Relatora: Des.ª Maria Elza. Data do acórdão: 24.02.2005. Data da publicação: 1º.04.2005).
Confira-se outro julgado relatado pelo Desembargador Eduardo de Andrade:
Sendo assim, em face do princípio da irretroatividade da lei, o Decreto Municipal que regulamentou a matéria relativa ao § 3º do art. 100 da Carta Magna não pode ser aqui considerado, devendo prevalecer o valor de 30 (trinta) salários mínimos estabelecido constitucionalmente (TJMG, 1ª Câmara Cível, Ap. 1.0073.04.014602- 6/001, Rel. Des. Eduardo Andrade, julgado em 10.08.2004, DOE de 13.08.2004).
Pelo que declinado, pensamos, que o que insculpido no art. 1º da Lei n. 1.788/2007, não é aplicável às ações que estavam em andamento quando da sua edição (em 31/10/2007), pois, conforme se viu a saciedade, as normas de direito instrumental material, tal qual o artigo 1º da lei citada, não incidem nos processos em andamento, quer se trate de processo de conhecimento, quer se trate de processo de execução, por evidente necessidade de valer o ideal de segurança jurídica também abarcado pelo Direito.
Como já exposto, a Lei 1788, de 31 de outubro de 2007, que fixou limites de 10 (dez) salários mínimos, diferentes, portanto do patamar insculpido no art. 87, I e II, do ADCT para as dívidas de pequeno valor da Fazenda Estadual, é norma processual com efeitos jurídicos material, de modo que se aplica apenas para as sentenças transitadas em julgado depois da sua vigência, ou seja, a partir de 31 de outubro de 2007, considerando que o marco inicial é o trânsito em julgado da sentença, que se constitui no direito processual definindo o direito adquirido do cidadão ao procedimento mais simples.
6. – CONCLUSÃO
Diante as razões expostas, entendemos que, na fixação de 10 (dez) SM trazida pela Lei 1788/2007, como conceito de dívida de pequeno valor para a fazenda Estadual, não se pautou o Estado de Rondônia para editar tal norma, no princípio da razoabilidade, tampouco, abalizou-se nos critérios de sua própria capacidade financeira, haja vista que devemos partir da premissa de que a Carta da República estabeleceu como razoável 30 salários para os Municípios e 40 salários mínimos para os Estados, sendo que nossos Legisladores poderiam ter fixado outro valor, que ficasse mais perto do patamar médio trazido pela Carta, mas que não fugisse abruptamente como faz a Lei indigitada, da necessária razoabilidade para o ato.
Pretendemos demonstrar, neste modesto estudo que a Lei Estadual, também não deve ser aplicada aos processos em andamento tenha ele ou não sentença transitada em julgado, pois, o Estado não tem competência constitucional para legislar a respeito de matéria processual, sob pena de ferir de morte o princípio do direito adquirido, com relação ao patamar de 40 (quarenta) salários mínimos, vigentes ao tempo em que o cidadão procurou o Judiciário e intentou sua ação.
Por final, acreditamos veementemente que o Egrégio Tribunal de Justiça de Rondônia reconhecerá, pela via difusa, a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 1788/2007, consubstanciado no desrespeito ao princípio da razoabilidade para sua edição, e ainda reconhecerá sua inaplicabilidade aos processos em andamento quando da sanção da norma estadual.
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O Autor é Advogado.
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NOTAS DE REFERÊNCIA:
- Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.158-8-AM (medida liminar) – trecho do voto “...A lei agride o princípio da razoabilidade, a meu ver, patentemente...”. – o mesmo entendimento no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 855-PR;
2 - in.Curso de Direito Administrativo.,10ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 66;
3 - Art. 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação;
4 - LOA n. 1.297, de 29 de dezembro de 2003; Receita Total de R$ 2.345.252.900,00. LOA 1.459, de 9 de março de 2005; Receita Total de R$ 2.529.761.276,00. LOA n. 1.584, de 1º de fevereiro de 2006; Receita Total de R$ 2.782.000.000,00. LOA n. 1.698, de 1º de janeiro de 2007; Receita Total de R$ 3.055.937.000,00. LOA n. 1.842, 28 de dezembro de 2007; Receita Total de R$ 3.389.275.000,00. – informação retirada do site: www.tce.ro.gov.br – ícone contas públicas;
5 - A reserva de contingência tem como objetivo atender as despesas não previstas ou com dotações insuficientes para pagamento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos, podendo nisso ser incluída as condenações contra o poder público, se de quantia vultosas, servindo, pois, para o pagamento de RPV.
6 - Notícia veiculada dia 11/03 às 14:28hs, no site www.rondoniaovivo.com;
7 - IDEM a nota 6;
8- ADI 2868 / PI – PIAUÍ - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Relator(a): Min. CARLOS BRITTO - Relator(a) p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA - Julgamento: 02/06/2004 - Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
9 - Rondônia está atrás nas finanças públicas apenas de PARÁ e AMAZONAS, conforme informação contida no site do IBGE, sítio www.ibge.gov.br, ícone Estados@;
0 - Quando do Julgamento, a Corte de Rondônia assim se pronunciou: Execução. Despesa de precatório. Fazenda Pública municipal. Lei municipal. Valor. Salário mínimo. Não é razoável o valor estabelecido por lei municipal, em um salário mínimo e meio para pagamento de crédito independente de precatório, se muito inferior ao de previsão constitucional.(Agravo de Instrumento n.100.013.2001.002712-5, Rel. Des. Eliseu Fernandes) – grifos nossos;
11 - Mestre em Direito Público. Especialista em Processo Civil. Professor de Processo Civil. Juiz Titular da 4ª Vara de Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte-MG. Artigo: Requisitório de pequeno valor: direito intertemporal, inconstitucionalidade na inobservância ao princípio da proporcionalidade;
12 - julgados transcritos no mesmo trabalho científico citado na nota 11.