Médicos e quase médicos do tempo do onça – Por Confúcio Moura

Médicos e quase médicos do tempo do onça – Por Confúcio Moura

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Foto: Divulgação

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 No  meu tempo, naquele tempo, isto e aquilo, sinal que se está ficando velho. A saudade de tudo que passou. Mais passado que futuro, mais saudade que esperança. Não é bom. Sem passado, sem história, sem vivências não teria literatura, não teriam as novelas e nem as peças teatrais, nem os causos. Quando me instalei em Ariquemes, idos anos setenta, improvisei um hospital num galpão de cassiterita, que tinha sido abandonado. Galpão comprido, metade dele virou hospital a outra metade moravam três famílias. Tapei os buracos entre as tábuas com mata-juntas e dei uma mão de tinta. Furei uma cisterna e a Izaura me cedeu um ponto de luz à noite. Mandei Tarciso fazer as camas para duas enfermarias, comprei um filtro de barro e uma mangueira para puxar água do poço e jogar na caixa. João foi meu primeiro “auxiliar de enfermagem”, depois Jandira, Madalena, Raimunda, Ana e Rosa. Mandei o João encher o filtro todo dia cedo.

Arear os copos de alumínio e deixar ali enganchados num prego. Ele não conhecia filtro. Enchia o filtro pela torneira. Por baixo. E água do poço era bebida como se fosse filtrada. Um dia Deuzinha, de cinco anos,  caiu no poço, Sabá pulou dentro pra salvar a menina e salvou. Juntou gente e arrastaram Sabá e Deuzinha agarrados na corda. Ensinei o João a encher o filtro por cima. Ele teimava em encher a filtro por baixo. Mas, ninguém morreu tomando água sem filtrar e com gosto de Deuzinha. Ficou assim por muito tempo. Jandira não acreditava que hepatite fosse transmitida. Para desafiar e mostrar fé, dava água pro doente e bebia o resto, bem do lado que  dos lábios do paciente. Manuela veio ganhar neném, ganhou normal, não tinha leito adequado pra ela, coloquei-a na minha cama de mola. Há tempo que não vejo mais a cama de mola. Chiava quando se mexia. Tinha até um molejo gostoso.

Com o tempo, ali mesmo, comecei a fazer cirurgia, sempre crente que o Deus dos ignorantes é bem mais misericordioso que o Deus dos sabidos. Fui operando, cortando de verdade, de ver sangue e tudo mais. A poeira da rua fazia nuvem sobre o prédio do hospital de madeira bruta. Cobria tudo por dentro como um manto de talco. Com pouco tempo se podia escrever sobre a mesa. E Rosa aprendeu a suturar. A menina tinha uma mão santa. Teve vez que Rosa ponteava de um lado e eu do outro. Para andar mais ligeiro. A Rosa era incrível. Certo dia Sebastião, que havia se convertido a uma igreja evangélica, havia poucos dias, teve um surto de visões dentro da igreja, ameaçou o pastor, esbravejou, xingou  e passou a pregar do jeito que vinha ele soltava. Endoidou de vez. Os “irmãos” o agarraram e levaram para o hospital. Raimunda estava na porta rua, olhando o movimento de gente chegando na rodoviária do Joaquim, que ficava perto. Os crentes chegaram perto e soltaram  Sebastião enfurecido e suado. Raimunda correu de medo. Ele correu atrás dela, toda de branco, suja de poeira, técnica de enfermagem numa terra ainda de ninguém. Sebastião pulou nela, pernas cruzadas na barriga e chave no pescoço. Caíram no chão, ali mesmo, embolados, injetei quatro ampolas de amplictil na veia dele. E o cara não dormiu. Peguei mais e fui injetando, até que ele cedeu e apagou, no bom sentido, ainda vivo.

Chegou um jovem esfaqueado, levei pra sala e fiz a chamada “laparotomia exploradora”, muito sangue, mandei tirar sangue dos curiosos à porta e fui transfundindo nele. Era assim, só se fazia a classificação ABO e Rh e nada mais. Só Deus na causa. Ana me auxiliava, Raimundo batia o ambu para manter a respiração viva. Veio cólica na Ana, dor de barriga, ela pediu para ir ao banheiro. Eu falei “aguente” Ana, ela falou, não tem jeito. Então vá. Ela foi e depois voltou. Assim começou Ariquemes, assim testei na prática o que vi nos livros. Abençoados livros, atlas de cirurgia, muitas vezes pedia alguém para abrir algumas páginas, para me orientar o próximo passo a seguir. Assim exerci a medicina dos tempos do onça.

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