- Vou pra Guajará Mirim tomar cachaça na Festa dos Filhos e Amigos da cidade
- Tá bêbado? Você mora a milhares de quilômetros de Guajará, vai largar seu emprego aqui, sua família, comprar passagem de avião e depois enfrentar mais 350 km de estrada para beber cachaça?
-Mas vou merrrmo.
- Véio, na boa, acho que você não ta raciocinando legal. Nem se fosse a melhor cachaça do mundo e estivessem distribuindo de graça. Já pensou em quanto você vai gastar? E cachaça tem em todo lugar.
- É meu amigo. Você ainda é novo, mas vai entender que há forças que destroem a lógica e constroem ignorantes.
- Cara, acho que você não ta legal. Esse sol aqui na beira da praia ta fritando os neuro. Vamos pra sombra. Sim, mas de que mesmo você ta filosofando?
- Passei minha infância em Guajará Mirim. Estudava no Simon Bolivar e tomava banho de igarapé no Palheta ou no sítio do Nogueira. Domingo ia pro estádio Paulo Saldanha assistir os dribles do Cascauva, do Marechal Rondon, e as defesas do Bagre, do Pérola, mas sempre via o América ser campeão. Domingo também era sagrado o filme no Cine Melhem ou no Guarani, a missa na Catedral e a azaração na Praça Mário Correa. Sem falar do tacacá com pipoca.
- Hum, entendi. Você quer é reviver tudo isso. Tomar banho de rio, assistir aos jogos, voltar ao cinema.
- Infelizmente muitas destas coisas nem existem mais.
- Então cabeção, me explica porque você quer torrar dinheiro para voltar lá? Que força é essa que destrói a lógica e constrói ignorantes?
- Amizade. Não importa se coisas não existem mais. Meus amigos estão lá.
- Ahhh pára. Amizade você tem um monte aqui.
- Amizades de hoje são diferentes da amizade daquele tempo. A correria, a necessidade de dinheiro, o tempo curto. Tudo conspira contra as amizades de hoje
- huummm. Tá saudosista!!!. Entendi. Mas se é para tomar cachaça e reencontrar os amigos, porque você não vai nas férias ou quando tiver promoção de passagem aérea?
- Porque é sempre em novembro que todos se encontram lá. Gente de vários estados brasileiros e de alguns países retornam nesta data.
- Fala sério. Quer dizer que esta piração de amizade é geral. Um monte de gente larga tudo para ir a Guajará Mirim? E só para reencontrar e tomar cachaça?
- Não. Durante quatro dias há ações sociais para apoiar a Casa do Ancião e programas de saúde pública, palestras sobre temas importantes, futebol entre os que ficaram e os que foram morar fora, apresentações de danças e músicas com artistas locais, lançamentos de livros de escritores regionais, carnaval na rua e baile no Rotary Clube. E não posso esquecer a feira gastronômica, onde posso lembrar-me da culinária diversificada daquela época, preparada por gregos, bolivianos, árabes e várias outras nacionalidades que colonizaram Guajará Mirim.
- Fechou. Agora entendi a motivação que foge a lógica. Mas não a que constrói ignorantes.
- Inveja, ciúmes, baixa estima, recalque. São vários sentimentos que dominam o ignorante. Lembrando Sócrates, “seja sábio e serás bom”.
- Tá. Faz de conta que eu entendi.
- O que você acha de alguém que vê esta festa apenas como a oportunidade de se tomar cachaça?
- Idiota
-E se esta pessoa é paga pelo povo para ajudar a desenvolver a cidade?
- Doente
- Garçon, traz a conta. Amigo, me leva pro aeroporto porque é hoje que eu vou pra Guajará, com chuva ou seu chuva eu chego lá.
- É o hino de quem estudava fora e nas férias de final de ano enfrentava uma estrada de atoleiros para reencontrar os amigos e familiares. E se chovesse o ônibus ficava três dias atolado. E vamos logo que não quero perder o vôo.