1 – GARÇOM NA HISTÓRIA
Diversamente de Getúlio Vargas e resguardadas as proporções, o deputado federal rondoniense Lindomar Garçom (PV) não vai precisar sair da vida para entrar para a história. Nem ele e nem suas colegas de casa Vanessa Grazziotin (AM) ePerpétua Almeida (AC), ambas do PCdoB. Para chegar a isso, nesta quarta-feira (05), Garçom e Perpétua assumiram o comando do comboio que os permitirá chegar ao protagonismo da reparação de uma das mais longevas injustiças entre todas que este país deixou que se perpetrasse contra um numeroso grupo de seus cidadãos. Eis que, tendo ele como presidente e ela como relatora, nesse dia a Câmara instalou a Comissão Especial que irá analisar a PEC 556/2002, proposta por Grazziotin há quase uma década, que trata dos direitos dos soldados da borracha.
Dito assim, pode até parecer banal. Mas só mesmo os remanescentes daqueles que foram recrutados pelas Forças Armadas brasileiras naquele conturbado ano de 1943 – grandes contingentes sob forte coação em circunstâncias e números de que jamais se saberá – ou seus descendentes é que podem dimensionar a iniqüidade que se tenta reparar e atribuir o verdadeiro significado aos papéis representados pelos parlamentares envolvidos nessa tarefa. Já lá se vão mais de 65 anos de espera pelo que lhes foi prometido e jamais cumprido pelos vários governos desse país, nesse período incluídas duas Constituintes com 20 anos de arbítrio no meio.
Para se ter uma idéia, leitor, entre iniciativas e clamores repletos de boas intenções, eles – os soldados da borracha – já foram objeto de uma CPI no Congresso Nacional, de pelo menos duas teses acadêmicas, de um documentário para o cinema, de abordagens várias em livros de história, para não falar de inúmeras reportagens em publicações do Brasil e do exterior. "Nós fomos trazidos aqui contra nossa vontade e jogados na selva, onde sofremos terrivelmente. Eu estou perto do fim da minha vida, mas meu país deveria me tratar bem.", puderam ler os norte-americanos no “The New York Times” em 2006, no depoimento de um deles colhido pelo jornalista Larry Rohter.
2 – SONHOS DIVERSOS
Não por acaso a professora Mariete Pinheiro da Costa, na monografia “O Parlamento e os Soldados da Borracha no Limiar da Segunda Guerra Mundial”, concluída em 2007, escreveu essa comovente dedicatória: “Dedico este trabalho à memória de todos os Soldados da Borracha que um dia ousaram sonhar com uma vida melhor e morreram acreditando nesse sonho. ... a todos os sobreviventes, que hoje estão muito velhos e cansados para lutar sozinhos. E àqueles que fizeram deste acontecimento uma bandeira de luta, em especial ao Professor Pedro Martinello, que morreu acreditando nisso.
Em tempo: o professor aí referido, já no andar de cima desde 2003, o foi na Universidade Federal do Acre (Ufac), onde se doutorou defendendo a tese “A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial e suas Conseqüências para o Vale Amazônico”, obra que virou referência para a maioria das pesquisas sociológicas sobre o assunto.
O programa que resultou nos contingentes chamados Soldados da Borracha surgiu de um acordo entre os Estados Unidos e o Brasil em plena II Guerra Mundial. O ataque japonês a Pearl Harbor cortou dos norte-americanos a sua principal fonte de borracha, a Malásia, e o presidente Roosevelt procurou o ditador Getúlio Vargas para preencher esta lacuna estratégica em troca de milhões de dólares em empréstimos, créditos e equipamentos. Como enfrentou muitas dificuldades no recrutamento, o governo resolveu equiparar a atividade ao serviço militar.
Como a urgência era um fator central, o governo começou esse “recrutamento” nas cadeias públicas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, onde, além de criminosos comuns, até dissidentes políticos foram “alistados”. O Nordeste brasileiro engajou-se na luta e desta vez não foram os bandidos nem inimigos políticos, mas os moradores das cidades e seus entornos que enfrentavam uma das piores seca na época, principalmente no Estado do Ceará.
3 – ESCÁRNIO EXPLÍCITO
O trabalhador “alistava-se” por dois anos, recebia um pequeno salário durante a viagem e um adiantamento financeiro para deixar com seus familiares. Além disso, recebia uniforme composto por duas calças, um blusão, um par de sandálias, uma rede, uma caneta, um prato, talheres, uma mochila e uma patente de soldado (com direito ao reconhecimento oficial após a guerra). Uma vez no seringal, o seu contrato de trabalho seria regido pela legislação em vigor. O que significava uma quase escravidão, para variar.
Eles seguiam até Belém (PA) e, quando lá chegavam, o que encontravam eram hospedarias que mais pareciam campos de prisioneiros; alimentação deteriorada; assistência médica deficiente; viagens a pé que podiam levar dias ou meses até o seringal, além das condições de trabalho desumanas.
Segundo documentos governamentais, mais de 55 mil pessoas, quase todas do Nordeste assolado pela pobreza e pela seca, foram enviadas para a Amazônia para extrair borracha para o esforço de guerra. Não há números oficiais sobre quantos sucumbiram a doenças ou ataques de animais, mas historiadores estimam que quase metade pereceu antes da rendição do Japão, em setembro de 1945. Ao final da guerra, a situação dos sobreviventes era tão grave que foi criada uma CPI na Assembléia Constituinte de 1946, para investigar a situação desses brasileiros, bem como procurar identificar os responsáveis. Acabou, como de costume, em pizza.
Só com a Constituinte de 1988 é que eles vieram a ter direito a uma pensão vitalícia no valor de dois salários mínimos. A PEC os equipara aos ex-combatentes, conferindo-lhes o direito a aproveitamento no serviço público sem concurso; pensão especial correspondente à devida patente de segundo-tenente das Forças Armadas; pensão à viúva em caso de morte; assistência médica, hospitalar e educacional gratuita, extensiva aos dependentes, prioridade na aquisição da casa própria para os que não a possuam ou para suas viúvas. Nada mais justo.
Apresentada em 2003, a PEC já foi arquivada, desarquivada e vem rolando pelas comissões desde então. Garçom entrou na briga logo no primeiro ano do mandato, porquanto a instalação da Comissão Especial que ora preside atende justamente a um requerimento de sua autoria que vai completar exatos dois anos no dia 21 próximo. É a derradeira etapa antes de ser votada em plenário.
Supondo que chegue a bom termo a tempo de alcançar alguns dos beneficiários ainda vivos, o episódio é bem uma prova irrefutável do escárnio com que são tratados os pobres deste país por suas autoridades. Para atender-lhes no que lhes é devido por direito é uma canseira sem fim (quase 10 anos de tramitação, dois dos quais apenas para a mesa da Câmara prover um requerimento solicitando a instalação da Comissão Especial), enquanto para humilhá-los submetendo-os à caridade pública como “bolsa família” se faz do dia para a noite, por intermédio de Medidas Provisórias. Pudera. Os beneficiários dos votos assim captados é que não podem esperar.