Completa 100 anos o pensador que trabalhou em RO e é um dos maiores do século XX
1 – RO E LÉVI-STRAUSS
Menos mal que alguém do Departamento de Sociologia e Filosofia da Universidade Federal de Rondônia (Unir) em boa hora tenha lembrado à instituição de fazer ao menos um registro, programando para o dia 27 próximo, a partir das 15h30, uma mesa redonda que tomará o resto da tarde e, à noite, a exibição de um documentário sobre um assunto do qual as academias do Ocidente inteiro – quiçá do planeta – estão se ocupando desde o início do ano. O vexame resultaria tanto mais imperdoável porquanto, nos eventos que estão acontecendo nas academias do mundo, há, com toda certeza, um pedaço (uma memória, uma remissão, uma referência) de Rondônia e apenas em Rondônia é que, sem a providência anunciada, não se faria um só relato dessa lembrança.
Tem a ver, leitor, com o conhecimento menos superficial das cercanias onde se vive e a axiologia daí resultante. Enquanto se derramou lágrimas que fariam transbordar para mais de três caixas d’água para prantear a demolição das ruínas do “Bar do Zizi” e igual volume de tinta para amaldiçoar sua reconstrução e a do seu entorno, ainda não se escreveu uma linha para lembrar que, no dia 28 que vem, está completando 100 anos o intelectual que passou por Vilhena, Pimenta Bueno, Porto Velho e Guajará Mirim recolhendo o material a partir do qual produziria uma obra capaz vincar para sempre a cultura ocidental e de alargar inexoravelmente as fronteiras mesmas da civilização. Melhor: até o momento em que estas estavam sendo digitadas, vivo, lépido, lúcido e fagueiro, recebendo a quem o visita em sua sala no Laboratório de Antropologia Social, no Collège de France, em Paris.
Quando a platéia local estiver assistindo o documentário “Lévi-Strauss: Saudades do Brasil”, no auditório da Unir-Centro, em Porto Velho, na noite de 27 próximo, na França já será o dia 28 e o país inteiro estará celebrando o centenário de um dos seus pensadores mais instigantes e originais entre todos os de uma geração que marcou o século XX – Claude Lévi-Strauss, cuja passagem por estes pagos é narrada em uma pá de capítulos de sua célebre obra "Tristes Trópicos" (1955), marco bibliográfico da antropologia contemporânea.
2 – EM PORTO VELHO
Em 1938, ano em que o jovem etnólogo francês liderou a expedição à Serra do Norte, isto aqui era parte Mato Grosso e parte Amazonas, mas a identidade do lugar já tinha fincado pé com o funcionamento da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, fazendo o trajeto Porto Velho-Guajará Mirim. A duras penas, bem verdade, porquanto a iniciativa privada (Percival Farquhar) desistira do negócio desde 1931, quando chegou mesmo a desativar a linha, passando em seguida o abacaxi ao governo brasileiro numa operação que tomou o pomposo nome de “nacionalização”.
Mas nem a um estrangeiro como Lévi-Strauss passou despercebida a decrepitude da ferrovia, que sobre ela escreveu na ocasião: "A veleidade do empreendimento, o fracasso que o sancionou, dão um valor de prova aos desertos circundantes". Por coincidência, há exatos 70 anos, pois era novembro quando, na companhia dos antropólogos Jehan-Albert Vellard e Luiz de Castro Faria, embarcou em Porto Velho rumo a Guajará Mirim. A expedição, que partira de Cuiabá no início de junho, tivera que ser interrompida em outubro, devido a um inoportuno acidente com um dos seus integrantes em Pimenta Bueno.
“Chegaram a encontrar os índios, mas um acidente grave forçou-os a deixar rapidamente o acampamento: Emídio, o arrieiro de Castro Faria, estraçalhou a própria mão com um tiro. A volta foi irremediável, embora tivessem de permanecer alguns dias em Pimenta Bueno”, relata a antropóloga Patrícia Monte-Mor na revista “Ciência Hoje” (novembro de 1998). E segue:
“Em Pimenta Bueno começou o retorno no dia 21 de outubro: subindo o rio Machado foram até uma aldeia de índios Tupi-mondé e na volta (já descendo o rio) seguiram até Porto Velho, passando por alguns antigos seringais, como Calama e Itapirema. Dali (de Porto Velho) foram até a estação ferroviária de Guajará-Mirim. Neste lugar, a equipe da expedição à Serra do Norte se despediu. Lévi-Strauss e Vellard seguiram para Port du Sucre (Bolívia) e (de lá) tomaram o avião de volta (para São Paulo)”.
3 – LIVRO E FILME
O período brasileiro de Lévi-Strauss, embora curto (vai de 1935 a 1939, como professor visitante da Universidade de São Paulo-USP), é fundamental para o desenvolvimento posterior de sua obra e carreira. A partir dessa experiência, o jovem professor de filosofia torna-se um etnólogo, um americanista: inicia-se na prática etnográfica, expõe em museus e galerias francesas o material coletado e publica seus primeiros textos na área. Sua produção, ainda que mescle informações etnográficas de várias regiões americanas, apóia-se, em larga medida, na etnografia realizada no Brasil.
Em 1955 ele escreve um livro inteiramente dedicado às viagens em território brasileiro. É bom lembrar, entretanto, que "Tristes Trópicos" não é um simples relato da experiência brasileira do antropólogo (embora também o seja), nem um retrato do país (ainda que o compreenda). Trata-se de um livro que parte do período brasileiro do autor, mas que se descola dele, alçando outros vôos. Diz ele, em “Tristes Tópicos”: "Um ano depois da visita aos Bororo, todas as condições para fazer de mim um etnógrafo estavam satisfeitas...".
A partir de 1988 o Brasil passa a ocupar um espaço importante nas reconstituições autobiográficas do etnólogo, sobretudo em depoimentos publicados na França, onde é apresentado o material – textos e objetos – de sua experiência de campo brasileira. Em 2002, sai publicado aqui “Lévi-Strauss: Saudades do Brasil”, uma seleção das belíssimas fotografias tiradas nos anos 30 pelo então jovem antropólogo. Com o mesmo título, o documentário que a Unir exibe dia 27 é, claro, aí inspirado.
Com uma hora e 57 minutos de duração, o filme – da documentarista Maria Maia - inclui 40 minutos de abordagem com Lévi-Strauss, entrevistado às vésperas de completar 98 anos, em Paris, num depoimento que funciona como fio condutor de toda a obra. Até o fechamento da coluna estavam confirmadas, para a mesa-redonda, a Dra. Arneide Cemim, e para comentar o filme a jornalista Simone Norberto e o cineasta e curador do Festcine Amazônia Jurandir Costa. Imperdível.