1 – A JUDICIALIZAÇÃO
Andam para lá de desenvoltas, no trabalho de elaborar novas normas legais, as mais elevadas instâncias da Justiça nacional. Num só dia, precisamente nesta quinta-feira (25), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu ao país conhecer as regras que estabelecem os ritos processuais no julgamento dos casos de infidelidade partidária e o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu aplicar ao funcionalismo público a Lei de Greve do setor privado, impondo, com isso, restrições às paralisações de servidores, que até agora não estavam sujeitos a nenhuma regra específica.
Não é, pois, sem razões que o professor David Fleischer, emérito da Universidade de Brasília (UnB), reclama da desordem que, de uns tempos para cá, deu de se estabelecer entre os poderes da República. De um lado, os parlamentares brasileiros acusam o Judiciário de andar a fazer leis, por assim dizer, invadindo áreas de competência constitucionais do Legislativo. Na outra ponta, uma rápida análise da atuação do Congresso nos dois anos mais recentes indica que a anomalia constitucional não é apanágio do Judiciário. De fato. Desde que vieram à tona as denúncias de corrupção nos Correios, em maio de 2005, que desaguaram no escândalo do mensalão, deputados e senadores passam mais tempo investigando colegas e dando explicações do que fazendo leis, função para a qual foram eleitos.
Desse modo, se o Congresso não legisla e não faz a reforma política, que vive saindo e entrando na pauta, o Judiciário rouba a cena e interpreta a lei para dar respostas às demandas do mundo político. É a chamada judicialização da política. Em depoimento colhido pelo jornalista Luiz Cláudio de Castro (O Globo), Fleischer cita pelo menos três matérias de grande repercussão em que o Judiciário legislou nos últimos anos: a verticalização, a partilha do fundo partidário e a fidelidade partidária.
- O Judiciário está invadindo a competência do Legislativo desde a verticalização. No início deste ano teve outra intervenção para mudar o fundo partidário, mas rapidinho o Congresso agiu para aprovar, a toque de caixa, um projeto reagindo à intromissão do Judiciário, diz Fleischer.
Nos últimos 30 meses, desde o início da crise do mensalão, os parlamentares estiveram debruçados sobre pilhas de papéis com denúncias contra colegas ou trancados com um batalhão de advogados atrás de uma resposta minimamente convincente para denúncias publicadas na imprensa. Refresco, só nos recessos e no início da atual legislatura, quando as duas Casas puderam se dedicar a matérias essencialmente legislativas.
2 – DENÚNCIAS VÁRIAS
Mas mesmo nesse período, a Câmara julgou e absolveu parlamentares acusados de envolvimento com a máfia dos sanguessugas na legislatura passada e reeleitos para um novo mandato. Parecia que os escândalos eram página virada, mas logo surgiram novas denúncias, agora tendo como alvo o Senado. Uma delas levou à renúncia do senador Joaquim Roriz (PMDB-DF). Já o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), que vinha se segurando no pincel após ver esfumar-se a escada, escapou de um processo, mas teve que se licenciar do cargo sob uma pressão colossal e ainda terá que responder a mais quatro acusações – talvez cinco.
Na Câmara, o deputado Mário de Oliveira (PSC-MG) é acusado de tentar matar o colega Carlos Willian (PTC-MG). Já Olavo Calheiros (PMDB-PE), irmão de Renan, corre o risco de perder o mandato por supostamente favorecer uma cervejaria que comprou uma fábrica de sua família. Diante do desinteresse dos parlamentares em aprovar a reforma política, o Judiciário decidiu restringir ele próprio o troca-troca partidário. Só então o Congresso saiu da apatia e aprovou uma proposta raquítica de fidelidade partidária, que por sua vez deixa inúmeras brechas.
Inconformados com a revoada de parlamentares para a base aliada, DEM, PSDB e PPS levaram a matéria ao STF e pediram de volta os mandatos dos infiéis. David Fleischer lembra que o troca-troca partidário não é privilégio deste governo ou legislatura.
- O DEM esquece que em 1995 eles ganharam 15 deputados que deixaram partidos da oposição para entrar no PFL, que era governo - alfineta o professor.
Outro caso típico de judicialização ocorreu em abril, quando sete dos 11 ministros do STF defenderam a aplicação da lei que regulamenta a greve de trabalhadores do setor privado em paralisações dos servidores públicos. Embora o direito de cruzar os braços tenha sido concedido ao funcionalismo público pela Constituição de 1988, o Congresso nunca chegou a um consenso para aprovar uma lei disciplinando esse tipo de mobilização.
3 – PAPEL POLICIAL
Por outro lado, enquanto o STF e o TSE desempenham o papel para o qual foram eleitos legisladores, estes se investem na função de polícia, transformando o Congresso numa grande delegacia, disputando câmeras e microfones para anunciar mais uma novidade da investigação contra este ou aquele colega que virou a bola da vez. Na busca dos holofotes, vale tudo, de quebra de sigilo a voz de prisão, instrumentos típicos do Judiciário e das polícias.
Em meio à confusão entre Legislativo e Judiciário, o Executivo também vai avançando sobre a competência do Parlamento, impondo sua agenda por meio de medidas provisórias. Quando o Congresso derruba uma MP, como foi o caso da que criava a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, o Executivo recorre a outro instrumento para fazer valer sua vontade: o decreto. Para o senador Jefferson Peres (PDT-AM), o Legislativo virou um sublegislador, perdendo espaço para os outros dois poderes. Há 12 anos no Senado, Jefferson Peres admite a culpa do Legislativo pelo esvaziamento de sua função constitucional, amparada na harmonia entre os três poderes.
- O Executivo se tornou o grande legislador. Em grande parte das vezes, a culpa é do próprio Legislativo. Como ele não legisla, não supre as lacunas da lei, o Judiciário se julga no direito de suprir essas lacunas. O Congresso virou um sublegislador. Se você olhar, nos últimos anos, 90% das leis são decorrentes de medida provisória - afirma o senador.
A despeito dos problemas gerados pela judicialização da política, Fleischer vê na intromissão do Judiciário uma forma de forçar o Legislativo a cumprir seu papel constitucional, especialmente no caso do julgamento da fidelidade partidária. “Isso pode apressar a medida que regulamenta a fidelidade partidária. O Congresso deveria ter aprovado, tem sido omisso. Então, o Judiciário age”, afirma. Fleischer lembra ainda que a Constituição de 1969 previa a fidelidade partidária, mas a matéria não entrou no texto da Constituição de 1988