Quarto crime mais rentável do mundo, o roubo de obras de arte e peças históricas ameaça o patrimônio cultural brasileiro. Os números e a facilidade com que os ladrões atuam são assustadores. Veja as dicas para evitar comprar peças suspeitas.
Publicado originalmente por Carla Mühlhaus em 06/08/2004
Eles planejam relativamente bem os crimes e são capazes de furtos quase perfeitos. Conseguem entrar e sair do local do crime, na maioria das vezes, sem armas nem violência, dando sinais de que conhecem bem o terreno. Quase sempre o crime só é levado adiante quando há comprador certo. Basicamente, do eixo Rio-São Paulo. Depois do furto, a demora para terminar o serviço com a venda do material roubado pode levar anos, tempo suficiente para que o sumiço pare de sair nos jornais e o caso esfrie. Quanto mais valiosa a peça, ironia do destino, mais difícil é a venda. Estimulados pelo mercado negro que abastece alguns antiquários e galerias de arte inescrupulosas e pela falta de controle e segurança dos acervos de algumas instituições e coleções particulares, os ladrões que atuam no Brasil em operações de roubo ou furto de peças históricas e obras de arte são bons no que fazem. Roubam de tudo: estátuas, santos, quadros, livros, documentos. Não costumam ver terminadas as investigações de casos do gênero. Na maior parte das vezes, infelizmente, tais furtos caem no esquecimento antes de figurarem em algum inquérito. Enquanto isso, entra ano, sai ano, o patrimônio cultural brasileiro vai sofrendo suas baixas.
No ano passado, não se sabe ainda se sozinho ou acompanhado, um larápio do tipo chamou a atenção de todo o país. Levou de fininho, do acervo do Ministério das Relações Exteriores do Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, nada menos que cerca de 150 mapas e pelo menos 500 fotografias, como informou o jornalista Elio Gaspari na Folha de S. Paulo de 5 de outubro de 2003. O furto havia acontecido no dia 22 de julho. Apesar da prática internacional recomendar a imediata divulgação do roubo de bens culturais, o Itamaraty não se manifestou de pronto sobre o que pode ser considerado um dos maiores roubos no setor de obras raras da história do país. Somente em agosto o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) recebeu uma lista por escrito de todos os bens furtados. No mês seguinte ela foi repassada ao Comitê brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que tomou para si a tarefa desagradável de divulgar o escândalo. Nestes casos, trata-se do procedimento correto, já que as denúncias costumam ajudar muito o trabalho da polícia.
Em todo o imbróglio, um detalhe ficou mais claro do que nunca: o patrimônio histórico e cultural brasileiro corre perigo. Só no Rio de Janeiro, estado com maior número de registros de peças furtadas, já são mais de 500 obras desaparecidas, segundo o Iphan. Os últimos furtos incluem até luminárias das ladeiras de Santa Teresa (instaladas no final do século XIX) e balaustres da Rua da Glória, colocadas no local pelo prefeito Pereira Passos, em 1904. Preciosidades do acervo do Itamaraty, como uma coleção de imagens do Rio de Marc Ferrez e 64 retratos dos membros da realeza (Princesa Leopoldina e d. Pedro II incluídos) ajudam a engrossar a lista – ao todo, o cadastro do Iphan lista mais de 800 peças do patrimônio desaparecidas no país.
Não fosse trágico, o roubo da Mapoteca teria algo de cômico. Ou, no mínimo, de curioso. No dia 21 de agosto, os itens roubados mais raros de todos foram devolvidos pelo correio. 11 das 12 pranchas do atlas Estado do Brasil, de 1631 (algumas com detalhes pintados em ouro) e todas as cinco pranchas do Livro de toda a costa da Província de Santa Cruz, feitos respectivamente em 1631 e 1666 por João Teixeira Albernas, um dos mais importantes nomes da cartografia portuguesa, retornaram à casa enrolados num canudo do Sedex. O remetente? O mesmo João Teixeira Albernas, que identificou-se como morador do lado ímpar da rua General Polidoro, também conhecido como cemitério João Batista. Quatro dias depois, o Museu do Itamaraty recebeu outro presente-devolução: um atlas com 19 mapas manuscritos, uma das peças mais valiosas da coleção escolhida criteriosamente pelo ladrão, que só devolveu peças únicas. São as mais difíceis de serem passadas adiante. Já a coleção de imagens do Rio de Marc Ferrez continua desaparecida. Ela pode estar em Londres ou Paris, onde artigos do tipo atingem a cotação máxima entre os receptadores. O Iphan possui um Banco de Bens Culturais Procurados. O caso está sob responsabilidade da Delegacia de Repressão aos Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (Delemaph), criada pela Polícia Federal após do roubo do Itamaraty.
Depois que a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) revelou que o furto de obras de arte ocupa o quarto lugar no ranking das atividades criminosas mais rentáveis do mundo (só perde para o narcotráfico, a lavagem de dinheiro e o contrabando de armas), a Polícia Federal brasileira passou a olhar para o problema com mais atenção. Na verdade o alarme já havia soado em 1997, quando a sede da Interpol, na França, pediu informações à Polícia Federal sobre roubo de arte sacra. Queriam saber se os brasileiros tinham conhecimento do tráfico ilícito de peças, de como agiam os ladrões e se havia alguma metodologia para prevenir os roubos. Eram franceses falando grego: nada disso existia. Passado o vexame, a PF tomou como primeira missão a formação de uma equipe especializada no assunto e a intermediação na criação de um convênio entre o Iphan e o braço brasileiro da Interpol que, desde o seu estabelecimento, na década de 50, ainda não havia se dedicado especialmente à este tipo de crime. Ironicamente, aliás, foi depois da criação do Iphan, em 1937, e a conseqüente valorização do patrimônio histórico nacional, que os criminosos passaram a olhar com mais interesse para a arte sacra e outras peças de valor cultural. Fotografias, pelo visto, são freqüentes objetos de desejo. Em 2002, um álbum com cerca de 60 fotos raras de São Paulo produzidas pelo fotógrafo Militão Augusto de Azevedo, entre 1862 e 1887, desapareceu do Arquivo do Estado de São Paulo, o segundo maior do Brasil. O Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo é um dos mais importantes registros fotográficos da São Paulo do século XIX. Antes do roubo, havia passado por um processo de restauração. O caso ainda não foi solucionado. O prédio do Arquivo, na Avenida Voluntários da Pátria, em Santana, tem 11 mil m2 a abriga milhões de documentos, entre eles um inventário de 1578 feito por um sapateiro da pequena vila de São Paulo.
Aos poucos, para evitar outros casos parecidos, a PF vem recuperando o tempo perdido. Em 2002, criou a Coordenação de Prevenção e Repressão aos Crimes contra o Meio-Ambiente e Patrimônio Histórico – COMAP, subordinada à Polícia Fazendária, especializada em investigação e combate de roubos e furtos do gênero. Também estreitou a sua parceria com a Interpol. Junto com o Iphan, a PF, o Conselho Internacional de Museus (ICOM), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Ministério Público, a polícia internacional tem uma frente de ataque respeitável. Trabalho, pelo menos, é o que não tem faltado.
São Paulo, segundo a PF, é o maior consumidor de peças de arte sacra, seguido de países europeus como Espanha e Portugal. O esquema costuma ser o seguinte: uma vez feito o roubo, as peças são distribuídas a um punhado de antiquários inescrupulosos, que agem como receptadores. No seleto círculo comercial de objetos sacros, os colecionadores são avisados assim que as novas peças chegam ao mercado. O próximo passo é vendê-las para coleções particulares. A partir daí, a localização da obra torna-se praticamente impossível. Quem compra, neste ponto da história, nem sempre tem como saber que está levando uma peça roubada. Mas pode, é claro, desconfiar. "Estes compradores sabem quando a procedência é duvidosa. O mercado de peças roubadas só existe porque há quem as compre", acusa o historiador José Neves Bittencourt, coordenador do Centro de Referência Luso-brasileira do Museu Histórico Nacional.
Tanto para prevenir roubos desta classe quanto para lidar com os já acontecidos, os experts no assunto costumam citar uma palavra mágica que vale para instituições e coleções particulares: inventário. "O inventário é a carteira de identidade de cada peça", diz Luiz Antonio Custódio, presidente do Comitê Brasileiro do ICOM. Através dele é possível divulgar rapidamente as descrições de peças roubadas, dando o sinal vermelho para a polícia e a alfândega. Se a peça furtada não puder ser reconhecida, afinal, o trabalho de investigação é praticamente perdido. Além disso, dentro dos museus e instituições culturais, é preciso controlar os acervos com métodos padronizados. "Não é permitido confiar na memória, muito menos na relação afetiva que geralmente existe com o acervo", alerta Bittencourt. Garantir a conservação de peças e documentos é outra condição fundamental. "Algumas obras de arte desapareceram não por roubo, mas por incúria. Simplesmente viraram pó", diz o historiador, que coleciona casos engraçados do Museu antes da implantação de sistemas específicos de controle e conservação de acervos, há 20 anos. "Alguns chefes de arquivo carregavam as chaves da seção no pescoço e outros se consideravam tão donos dos arquivos que os levavam para casa", conta. Esta relação "afetiva", digamos assim, também se dá muito com os livros. Quem sabe não foi ela que fez com que o desempregado João Batista Sannazzaro, de 54 anos, furtasse mais de uma centena de livros de três bibliotecas da Universidade Federal de Minas Gerais, em outubro do ano passado. Entre as obras levadas estariam algumas editadas nos séculos XVIII e XIX. Depois que as bibliotecas das faculdades de direito e arquitetura e do Museu de História Natural deram sinal do rombo, um livreiro ajudou a fazer o retrato falado do suspeito e a PF investigou sebos e livrarias, localizando as primeiras obras. O acusado, que foi solto depois de pagar uma fiança, confessou o crime e se explicou dizendo que sentia um "impulso irresistível" de carregar os livros com ele.
Contra episódios como este, a solução passa pela inevitável questão da segurança. E, neste quesito, as Igrejas perdem feio de qualquer museu. "O acesso às Igrejas daqui ainda é muito caseiro", afirma Carmem Lucia Lemos, pesquisadora do Museu da Inconfidência, em MG. "Muitas vezes, basta pedir a chave para uma senhora idosa responsável pela decoração do altar", acrescenta. Quanto mais distante o lugarejo, então, mais fácil a entrada. Para compensar tanta vulnerabilidade, os mineiros têm procurado fazer a sua parte. A recuperação de peças sacras e obras de arte, algumas desaparecidas há décadas, tem sido motivo de comemoração em todo o estado.
O pontapé inicial desta disputa entre mocinhos e bandidos foi dado em Santa Luzia, Belo Horizonte. Após a identificação pela TV de três anjos barrocos (um deles atribuído ao Aleijadinho) que iriam a leilão no Rio de Janeiro, a moradora Luzia Vieira denunciou à Associação Cultural Comunitária que as esculturas pertenciam ao Santuário de Santa Luzia, do qual havia sido freqüentadora assídua. Logo em seguida foi ajuizada ação civil pública, concedida liminar pelo juiz da comarca e resgatados os objetos a poucas horas do bater do martelo. Além disso, a exemplo do Iphan, que publicou no seu site uma lista com fotos de todos os bens procurados no país, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha/MG) também disponibilizou na internet a lista das peças desaparecidas no estado. Desde 1998, mais de 500 peças foram levadas de igrejas tombadas pela entidade. O telefone para denúncias de qualquer furto descoberto no país é (61) 414-6136. "Nossa intenção é integrar a comunidade na luta pela preservação de seu próprio patrimônio", afirma a presidente do Iepha/MG, Vanessa Brasileiro.
Tais iniciativas são, sem dúvida, muitíssimo bem-vindas. Só que mais uma vez fica faltando resolver o velho problema da segurança, calcanhar de Aquiles que, neste caso, não faz distinção entre países desenvolvidos ou em desenvolvimento. O problema não só é grave como também internacional. Segundo a Interpol, os países que mais registram roubos de obras culturais são Itália, França, Bélgica, Suíça, República Tcheca, Alemanha e Turquia. Um dos roubos mais famosos do mundo, no entanto, foi o da coleção Beit, ocorrido na Irlanda em 1986. Foram levados do Russborough House 18 quadros avaliados, a preços de hoje, em cerca de U$ 100 milhões. Após anos de investigações, a Scotland Yard descobriu que o objetivo do autor do crime – um ladrão comum que nunca foi capturado mas morreu anos depois do roubo – era participar de operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico. Praticamente todas as peças foram recuperadas.
São muito poucos os casos que acabam tão bem. No maior roubo de arte da história dos EUA, por exemplo, ocorrido em Boston em 1990, foram levados do Isabella Stewart Gardner Museum 12 quadros de Vermeer, Rembrandt, Renoir e Degas. As peças são avaliadas em U$ 300 milhões. O caso nunca foi solucionado. Segundo a Unesco, apenas 5 a 10% das obras roubadas voltam aos seus proprietários de direito. Mais da metade das obras roubadas são de coleções particulares. A instabilidade política em muitos países, o fato de algumas fronteiras serem facilmente atravessadas e a ausência de uma legislação (ou a falta de recursos para cumpri-la) abrem caminho para os saques, atropelando toda a vontade de salvaguardar o patrimônio nacional.
O caos é tão geral que até mesmo uma empresa inglesa foi criada especialmente para caçar obras roubadas de museus e colecionadores. Mantida por casas de leilão, bancos e agências de seguro, a Art Loss Register tem sede em Londres e é formada por um grupo de investigadores britânicos. É considerada uma arma importante contra os ladrões e falsários que rondam museus, galerias e colecionadores do mundo todo, mantendo vivo um comércio que movimenta, por ano, cerca de U$ 4 bilhões. Possui um banco de dados detalhado sobre nada menos que 100 mil itens desaparecidos no decorrer do século. A cada ano, em média, 10 mil obras formalmente dadas como desaparecidas ou roubadas entram para os seus registros. Desde a sua fundação, em 1991, a empresa já recuperou milhares. Segundo as suas estatísticas, são os quadros as obras mais recuperadas. Representam 51% do total de peças roubadas e resgatadas.
Se eles já existissem na época do roubo da Monalisa, em 1911, talvez tivessem conseguido desvendar o caso com mais clareza. Hoje existem duas versões para a história. A mais conhecida é a de que um ex-funcionário do Louvre, o carpinteiro italiano Vicenzo Perugia, teria furtado a obra por puro ódio aos franceses. O objetivo era devolvê-la à Itália, terra de Da Vinci, de onde, acreditava Perugia, Napoleão a teria levado. O que ele não sabia era que o próprio Da Vinci vendera a obra aos franceses. De qualquer forma, dois anos depois, Perugia foi preso ao tentar vender o quadro a um dono de galeria de arte de Florença. Já a história contada por Andreas Schroeder em Scams, Scandals and Skulduggery traz outros detalhes. Segundo o autor, o mentor do furto teria sido o falso marquês Eduardo de Valfierno, um brasileiro especializado em vendas de obras de arte falsificadas. Vendeu tantas que resolveu se impor um desafio: iria falsificar e vender a Monalisa. Chamou seu amigo Yves Chaudron, um dos mais renomados restauradores da França (e falsificador nas horas vagas), e começaram a ser feitas as sósias de La Gioconda. Valfierno sabia que, para conseguir vendê-las, teria que de fato roubar a verdadeira. É neste capítulo que entra o Perugia, contratado apenas para realizar o furto, tarefa que cumpriu com sucesso. Enquanto ele escondia o quadro e aguardava as próximas coordenadas do falso Marquês, o golpista já colocava no bolso o lucro das suas vendas, estimuladas pela grande repercussão que o caso teve em todos os jornais do mundo. Para os colecionadores, não poderia ter existido isca melhor. Ao todo, vendeu cinco Monalisas "originais" nos EUA e uma no Rio de Janeiro, amealhando um total de U$ 72 milhões. Ficou tão satisfeito com o pé de meia que deixou o quadro verdadeiro com Perugia e sumiu. O desfecho desta versão é o mesmo: dois anos depois, Perugia tentou vender a pintura em Florença e foi preso. A Mona Lisa foi devolvida para a França, enquanto o marquês de mentirinha começava a curtir sua gorda aposentadoria no Marrocos.
Para não entrar em roubada
Comprar uma peça histórica ou uma obra de arte exige alguns cuidados, antes e depois da aquisição. Veja alguns conselhos de especialistas:
Antes de comprar:
* Nunca deixe de ir às exposições que antecedem os leilões de arte. Tire todas as dúvidas sobre a procedência e o valor dos lotes com o leiloeiro. Se possível, faça a visita acompanhado de alguém que entenda de artes e antiguidades.
* Escolha antes a peça que quer arrematar, para evitar a compra por impulso. Na hora do bater do martelo, procure dizer o lance na contagem 1 do leiloeiro, não demonstrando muita emoção.
* Lembre-se que quem arremata o produto deve preencher um cheque-caução, que pode ser descontado em 24 horas pelo leiloeiro, se o pagamento não for efetuado. A comissão do leiloeiro é de 5% a 10% sobre o valor da venda.
* Em antiquários, peça sempre recibo e, se possível, pesquise antes da compra se a peça consta em alguma lista de objetos procurados. A consulta pode ser feita no site do Iphan. Se a peça for identificada na lista, entre imediatamente em contato com o Setor de Bens Procurados da Instituição, no tel. (61) 414.6134.
Com a peça nas mãos:
* Se você já possui outras obras de arte, aproveite para fazer um inventários destes bens, incluindo fotografias a cores que possibilitem um futuro reconhecimento. Mantenha-o guardado em local seguro, distante do lugar onde as peças estão expostas.
* Invista na segurança de portas e janelas, instalando fechaduras, grades e alarmes.
*Em caso de furto, não mexa no local invadido, chame imediatamente a polícia, preste todos os esclarecimentos necessários e forneça as fotografias das peças furtadas. O registro do furto não só aumenta as chances de recuperação das peças como torna mais difícil a revenda para outros compradores de boa fé.
* Faça sempre um seguro das peças.