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Por: Marcos Souza
*Glauber Rocha (
1938-1981) era um gênio? Sim, na minha humilde opinião, baseada em livros (
biográficos), documentários e até mesmo em artigos depreciativos quanto ao seu “duvidoso” talento de cineasta, ele era um gênio sim.
*Alucinado, criativo, verborrágico, louco e que possuía uma verve poética intransigente, transgressora e sempre caminhando na imaginária linha limítrofe entre a realidade social do país e o cerne lúdico de seu povo. O que embasa a sua figura personalíssima como um “homem a frente do seu tempo”, inquieto demais, brasileiro demais e, na devida proporção, extremamente necessário para a cultura brasileira era a sua percepção sobre a visão da arte, do seu trabalho, através de uma estética que vislumbrava a quebra do padrão estético da linguagem cinematográfica. Era inovador, mas também com sua carga pretensiosa tamanha e que por vezes o tornava insuportável.
*Figura que se tornou um divisor de águas dentro da cultura nacional, Glauber sempre foi respeitado e limitado, dentro da perspectiva unilateral, como aríete que buscava loucamente transmitir através da sua paixão, o cinema, o consciente popular das raízes antropológicas e culturais do seu povo, da sua gente, com as histórias que faziam a “sangria” na relação política e social, como fez no que considero o seu melhor filme, pelo menos o melhor “acabado”, onde a mensagem, ainda que seja datada, permanece intacta e inviolável: “Terra em Transe” (
1967).
*E escrevo sobre esse filme porque na segunda-feira (10) foi finalmente lançado no Rio de Janeiro o DVD duplo de "Terra em Transe", que possui a versão restaurada do longa-metragem e mais de duas horas de extras, incluindo o documentário inédito, dirigido por Joel Pizzini e Paloma Rocha (
filha de Glauber) "Depois do Transe" (
2005). Esse documentário traz 40 minutos com o
making of do filme, cenas inéditas reunidas e trechos de uma entrevista que Glauber deu quando estava exilado em Roma, em 1975.
*O filme é uma vigorosa visão sobre a política vivenciada no Brasil no período da ditadura militar, só que remetida numa alegoria que retrata o cenário político da América Latina pré-ditaduras, onde Glauber, na sua linguagem cinematográfica, destoa a ordem cronológica da sua história a partir da narração em flash-back, à beira da morte, de um poeta e burguês chamado Paulo Martins (
Jardel Filho).
*O filme conta a história desse homem, um intelectual que acredita em causas populista e que busca um ideal através de utopias libertárias de esquerda, e que resolve apoiar e levar ao confronto político de um país latino (
fictício) chamado Eldorado o líder Dom Felipe Vieira (
José Lewgoy) contra o ditador fascista e que utiliza o misticismo como meio de angariar o apoio popular, Porfírio Diaz (
Paulo Autran), mas em meio à esses dois surge o capitalista Júlio Fuentes (
Paulo Gracindo), que apesar de se declarar de esquerda acaba se aliando ao ditador para apoiar o avanço de uma multinacional estrangeira sobre o capital do país. Fato esse que obriga Paulo a buscar a violência revolucionária para combater os governantes.
*Parece um tema forte e um prato cheio para os censores da ditadura militar vetarem a exibição, mas não esqueçamos que é um filme de Glauber Rocha, onde os diálogos imprimem um ritmo de “palavra de ordem”, com frases de efeito, como slogans, epitáfios varonis, tramas de palavras berradas. É alegórico, mas com fundo de verdade, com mensagem política clara: revolução popular.
*Agora não espere facilidades para compreender particularmente esse filme de Glauber, que segue uma narrativa autoral significativa, numa sucessão de cenas que beiram o caótico, onde o cineasta, propositalmente, não segue linearmente uma história, mas funciona como fragmentos que vão se almagamando e dando “sentido” a história. A intenção é não só passar uma rasteira na forte censura militar da época, mas transgredir a estética cinematográfica e fazer com que o espectador pense, racionalize as imagens contidas nos fotogramas e tenha a sua própria concepção sobre a proposta temática do filme.
*Como bem escreveu em novembro do ano passado o crítico Sérgio Farias Filho sobre a intenção de Glauber em relação ao filme: “O que ele realmente deseja é causar um desconforto no público de maneira tal que este não consiga sair do cinema sem refletir acerca do que viu na tela”.
*“Terra em Transe” esteticamente é um avanço para o cineasta Glauber Rocha, onde ele flui suas influências do cinema revolucionário russo de Sergei M. Eisenstein e do neo-realismo italiano de Roberto Rossellini com uma abordagem pessoal, complexa e inovadora, numa intricada edição de imagens, com a fotografia (
preto e branco) sempre competente de Luiz Carlos Barreto (
hoje produtor e foi responsável pela fotografia de outro filme fabuloso, um dos precursores do Cinema Novo, “Vidas Secas” - 1964 -, de Nelson Pereira dos Santos).
*Ainda mais importante que “Deus e o diabo na terra do Sol” (
1964), o seu primeiro filme ficcional para os cinemas e que marcou a estética do Cinema Novo (
“uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”), “Terra em Transe” chegou a ganhar um artigo apaixonado do diretor Martin Scorcesse para a revista
Cahiers du Cinema (
edição de nº 500), um pesquisador nato de cinema e fã incondicional de Glauber Rocha, a ponto de possuir uma cópia do filme em
35mm no seu acervo particular.
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TEMPO GLAUBER
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Marcos Souza é editor de Cultura do site e assistiu o filme num desgastado VHS da extinta Globo Vídeo há muito tempo.