1 – A VIDA DE ACM
Quem sabe da vida de Antônio Carlos Magalhães (ACM), o senador baiano falecido nesta sexta-feira (20), aos 79 anos, é o jornalista João Carlos Teixeira Gomes, ou simplesmente “Joca” (como é conhecido na Bahia), igualmente baiano e também professor universitário, poeta, contista e biógrafo de Glauber Rocha, além de autor de primoroso estudo sobre Gregório de Matos. Ex-diretor de redação do “Jornal da Bahia” e um dos raros casos de enfrentamento com aquele que chegou a ser chamado de “Rei da Bahia”, Joca é o judicioso autor de “Memórias das Trevas – Uma Devassa na Vida de Antônio Carlos Magalhães”, cujo título já é para lá de auto-explicativo.
Lançado em janeiro de 2001, o livro mereceu da mídia uma frieza quase que glacial ou, conforme anotou Mino Carta, chamou a atenção o estrepitoso silêncio com que a obra foi recebida na grande imprensa. Possivelmente porque o livro, dentre outras coisas, tratou também dessa relação entre o personagem e a imprensa, marcada quase que invariavelmente pela cumplicidade e conivência. A publicação do livro, entretanto, teve muitos entraves. Pronto para a publicação desde 1999, foi oferecido a várias editoras, sem que nenhuma demonstrasse interesse. Naquele ano ACM presidia o Senado, mandava e desmandava no governo FHC e, como se diz por aí, quem tem esfíncter anal, tem medo. Até que a “Geração Editorial”, de Luis Fernando Emediato, decidiu editar “Memórias das Trevas”.
Na época, uma resenha sintetizou: “É um registro sobre o uso e o abuso do poder ao longo de mais de 40 anos. Uma mistura de truculência, corrupção, tráfico de influências, uso do estado a serviço de grupos privados, sob a batuta de um estilo arcaico, porém astuto, de um coronel nordestino que coleciona, entre seus orgulhos políticos, a fórmula de eleger um governador baiano, João Durval, em 1982. ACM dá a receita: com o chicote numa mão e um saco de dinheiro na outra”. A frase, aliás, foi registrada por Ricardo Noblat, em reportagem memorável do “Jornal do Brasil”.
2 – FILHO DA DITADURA
Então vereador pelo PT em Salvador, Emiliano José emendou num texto publicado pelo site da Fundação Perseu Abramo: “Em alguns aspectos, o texto de Joca fará justiça a ACM. Demonstrará, por exemplo, que em toda a sua vida pública, iniciada em 1954, quando se elegeu deputado estadual graças a uma eleição suplementar, nunca se afastou da condição de defensor intransigente dos interesses das classes dominantes mais retrógradas do país, particularmente na Bahia, onde os índices de pobreza, de fome e de marginalização do povo são os atestados mais evidentes dessa opção, para além naturalmente de toda a farra publicitária que os meios de comunicação de propriedade dele próprio promovem no Estado, hoje governado por um seu subordinado (na época, César Borges).
Os jornalistas mais jovens deveriam ler o livro. Para não repetir erros costumeiros, como falar inocentemente que ACM foi eleito três vezes governador da Bahia. Diz-se os mais jovens porque os mais velhos, se o fazem, estão cumprindo ordens de cima para não atrapalhar a cumplicidade estabelecida desde há muito. ACM, é preciso insistir, e Joca o faz, é filho dileto da ditadura. Apoiou entusiasticamente o golpe, participou do nascimento de um regime de terror e o sustentou com um entusiasmo digno de louvor.
E graças a isso, foi prefeito biônico de Salvador (1967-71), indicado pelos militares (Castello Branco). Foi governador biônico a primeira vez (1971-75), indicado pelos militares (Garrastazu Médici). E governador biônico uma segunda vez (1979-83), indicado pelos militares (Ernesto Geisel). Só na terceira vez (1991-95), é que ele se elege, e por escassa margem de votos sobre seus adversários. Outra justiça que o livro lhe faz: sempre bajulou os poderosos – ‘quando quero agradar, sou igual a uma puta’ é uma frase que a ele é atribuída, e que corresponde ao seu perfil. Com relação aos militares, então, a subserviência, a bajulação chegavam a extremos, e não por acaso recebeu tantos cargos da ditadura”.
3 – SEMPRE EM PÉ
Seja como for, o fato é que ACM nunca esteve fora do poder. E sua capacidade de pular do barco no momento em que estava perto de afundar sempre foi conhecida – outra justiça que se lhe tem de fazer. Os escândalos, no entanto, sempre estiveram na cola de ACM. Entre os mais cabeludos, destaque-se: em 1975, presidente da Eletrobrás, coordena as obras de construção de Itaipu e emprega na companhia diversos aliados. Há acusações de desvio de verbas e superfaturamento da hidrelétrica.
Em 1985, recém-empossado no Ministério das Comunicações, obtém uma concessão de TV em seu Estado e funda a TV Bahia em condições privilegiadas. Dois anos depois, negocia nos bastidores a empresa de comunicação NEC ao Grupo Globo por US$ 1 milhão, em uma operação considerada fraudulenta. Em troca, a TV Bahia recebeu a programação da Globo no Estado
Em 1992, coloca-se contra o impeachment de Fernando Collor e ordena que a bancada baiana vote contra a cassação do presidente. Entre 1994 e 2002, é acusado de perseguir e mandar matar pelo menos 10 jornalistas que publicaram denúncias contra seu governo e o do sucessor, Paulo Souto. Com a quebra do Banco Econômico, de Ângelo Calmon de Sá, em 1995, descobre-se que o banqueiro fez doações ilegais para a campanha de ACM ao governo baiano, em 1990, no valor de US$ 1,1 milhão. Calmon foi processado, mas o caso foi arquivado em 1996. Em 1997, faz uma manobra política e consegue ser reeleito presidente do Senado - quando a lei permitia apenas uma eleição.
Em 2001, é acusado de ter manipulado o painel de votações do Senado e obtido a lista de senadores que votaram na cassação do senador Luiz Estevão. Para impedir a cassação, renuncia dizendo-se vítima de um complô armado por Jader Barbalho. Em 2002, é acusado de ter pedido à Secretaria de Segurança Pública da Bahia o grampo de pelo menos 200 pessoas, entre políticos e jornalistas, que lhe faziam oposição em seu Estado. Internado deste o dia 10, morreu a 20 de complicações renais e cardíacas.