Toda vez que acontece uma situação de violência envolvendo policiais ou agentes de segurança, são feitos inúmeros questionamentos. Se não há motivos para uma ação, surgem dúvidas que remetem ao preparo do policial. E quando se trata de legítima defesa, também fica a dúvida sobre a consequência da forte emoção porque passou o agente da lei.
Na reportagem especial de hoje, o tema é a adrenalina, o emocional, os dias seguintes após situações que aconteceram fora da normalidade. Em que condição os policiais desenvolvem suas atividades e até que ponto um fato violento altera o comportamento, tanto no trabalho como na rotina familiar.
Sonho
Desde criança, Mendes – o nome é fictício para preservar o policial e seus familiares – queria ser da polícia. Não sabe de onde veio isso, já que seu pai era
agricultor e sua mãe costureira. No entanto, se encantava ao ver as viaturas policiais em alta velocidade com as sirenes ligadas.
“Eu ficava imaginando: as pessoas te admiram e respeitam, você pode ter uma arma na cintura e prender os ladrões. Aquilo me fascinava. Lembro de papai ter comentado com mamãe, de que eu trocava o bate bola com a turma do bairro por uma forquilha de madeira, que transformava em revólver e ficava “dando tiros” e mandando os ladrões levantar as mãos”, conta Mendes, que neste ano completa 30 anos na polícia.
Ele explica que os ensinamentos obtidos no período de serviço militar foram a motivação que precisava para se inscrever em concurso e logo em seguida virar policial. Já chegou na corporação com uma vantagem em relação a maioria dos demais colegas. Tinha usado arma no Exército e sabia atirar.
Isso também lhe ajudou a ser descartado do serviço burocrático, o perfil operacional automaticamente fez com que Mendes atuasse nas ruas, correndo atrás de bandidos como fazia quando criança, só que agora era de verdade.
Fez muitas prisões e sem a necessidade de dar um único tiro. Quando isso aconteceu, sua vida mudou completamente. Ele estava de plantão quando sua equipe foi acionada para uma ocorrência de assalto.
Morte
Dois bandidos armados, e sob efeito de drogas, roubaram um supermercado e fugiram em alta velocidade com a ajuda de um comparsa que aguardava na frente do mercado. A equipe de Mendes nem chegou a ir até o mercado, já havia sido avisada que os criminosos tinham fugido em direção à BR-364, no sentido
Cuiabá.
Minutos depois, os policiais encontram os bandidos em uma invasão no bairro Renascer. É feito um cerco, os criminosos fogem cruzando pelas casas e trocando tiros com os PMs. Mendes acerta dois tiros em um dos assaltantes que cai nos fundos de uma residência.
Ilustrativa
Outro bandido é baleado e o terceiro consegue fugir. Ao se aproximar do assaltante ferido, Mendes percebeu que era um rapaz bem jovem e já estava morto.
Daquele dia em diante, a vida do policial mudou completamente.
A imagem do criminoso caindo morto lhe atormentou por muito tempo. Sabia que era policial, tinha sido preparado para aquilo, mas não imaginava que tirar uma vida, mesmo sendo em legítima defesa, ia além do preparo técnico e operacional que havia recebido.
Mendes continuou atuando nas ruas, mas toda a vez que sua equipe era chamada para uma ocorrência de vulto, seu coração disparava e uma ansiedade lhe
dominava. Incentivado pela esposa, o policial procurou um psicólogo um ano após a ocorrência com troca de tiros e morte do ladrão.
Fez terapia e com dois anos de tratamento conseguiu se libertar da ansiedade e voltar a desempenhar seu papel de proteger o cidadão. Mendes afirma estar preparado para qualquer tipo de situação que venha ocorrer, inclusive ter que atirar em criminosos de novo, se for o caso. “ A experiência não é boa, é tenso, adrenalina vai a mil, mas juramos defender e proteger a sociedade, então assim é que deve ser feito”, argumenta.
Inconsistente
O delegado André Tiziano, titular da Delegacia de Homicídios de Porto Velho, diz que existe falha no critério de avaliação para ingresso na polícia. E são vários fatores que levam a essa constatação. O primeiro é a dificuldade para conviver com a violência. Isso é percebido na exposição do dia a dia.
Delegado André Tiziano
Outra questão muito importante e grave, de acordo com o delegado, é o acesso às corporações de criminosos usados para se infiltrar na polícia. André diz conhecer exemplos de jovens usados pelo crime organizado, que banca toda a preparação teórica, física e psicológica. “Não podemos negar isso, é uma estratégia do crime para tentar ter informações privilegiadas” destaca.
O delegado argumenta também que existe uma pluralidade de condições dentro da polícia que facilita a percepção de pontos falhos. Quando isso acontece, abre-se o caminho para a bandidagem. Outro detalhe muito importante na visão de Tiziano, é o treinamento continuado e acompanhamento das ações de legítima defesa de terceiros.
Ele ressalta que o policial citado nessa reportagem serve como exemplo. Agiu em legítima defesa e conseguiu abater um criminoso em confronto. “ Eu sei quem é o policial, um servidor correto e atuante, mas que, infelizmente, só teve treinamento superficial dentro da polícia e nunca fez um curso de reciclagem”, aponta
Tiziano.
O delegado enfatiza ainda, que o psicológico de muitos policiais é focado na abordagem, revista e prisão, nem passa pela cabeça a hipótese de ter que sacar a arma e atirar. É por isso que muitos policiais nem fazem questão de treinar tiro e como não há cobrança anual para reciclagem e aprimoramento, uma dinâmica séria de trabalho como essa é deixada de lado.
André Tiziano explica também que independente da situação vivida por qualquer policial, de qualquer força, em ação, sempre é percebida alteração psicológica em quase 100% dos casos.” O policial bem equilibrado emocionalmente e que conta com suporte eficiente, tem uma probabilidade mínima de errar.
Claro que existem casos pontuais, isolados, como a gente observa tanto na PC como PM, mas isso são exceções. Nessa questão de acompanhamento social e psicológico, a Polícia Militar de Rondônia está anos luz à frente da Polícia Civil”, finaliza Andre Tiziano.
Amparo
A Diretoria de Serviço Social da Polícia Militar de Rondônia é o órgão que acompanha o dia a dia dos policiais. As capitãs Magda Tatagiba, diretora, e Márcia Nascimento, diretora adjunta, são responsáveis por uma equipe formada por 20 psicólogos.
Nove são oficiais de saúde e onze psicólogos são voluntários, cadastrados no Programa Voluntariar, da Secretaria Estadual de Segurança. A agenda dos profissionais é cheia, afinal a média é de 500 atendimentos por mês.
Depressão e ansiedade são os problemas mais comuns que atingem os PMs. Sem uma avaliação psicológica mais ampla, não tem como pontuar a razão dos distúrbios, enfatiza a capitã Tatagiba. Eles podem ocorrer por inúmeros fatores, inclusive a forte emoção relacionada a um tiroteio, como aconteceu com o policial Mendes.
Tatagiba e Márcia pontuam que é importante o próprio policial estar atento as suas emoções e que psicólogo não é só para atender doentes. Questões profissionais e familiares, ou até mesmo encaminhamento de pensão por morte, também são tratados no local que conta também com assistentes sociais.
Atividade de saúde mental na pandemia
Mesmo com a pandemia o trabalho continuou, inclusive sendo incluído atendimento virtual que surpreendeu pela grande procura, afirmam as capitãs. Elas garantem que mais de 80% dos casos que chegam para a Diretoria de Serviço Social são resolvidos. A Diretoria Social conta com plantão psicológico diário que atende até familiares de PMs, como tem sido nesse período de pandemia que vitimou muitos servidores da segurança.
Tiroteio
Uma resolução aprovada pela PM em 2018, criou um protocolo para atendimento de policiais que passam por situações de forte emoção, como troca de tiros em ação, por exemplo. Alguns policiais procuram o apoio psicológico por conta própria, mas a maioria é encaminhada pelos comandantes das unidades onde teve policial envolvido em situação de grande vulto.
O trabalho visa justamente avaliar até que ponto o emocional dos policiais é afetado por situações pontuais e de risco. As capitãs enfatizam que é praticamente impossível viver um momento de grande tensão e não ser afetado por isso, mesmo os policiais sendo preparados para as mais diversas situações.
Polícia Civil
Desde 2018, funciona na Polícia Civil de Rondônia um Núcleo de Apoio Psicológico. Em parceria com a Unir, é feito um programa de gerenciamento do estresse. Existe o entendimento de que quanto maior for a qualidade de vida dos agentes, melhora será a prestação de serviço para a população.
Folder com informações de atendimento social da Polícia Civil
Em três anos, quase 500 policiais já receberam atendimento dentro da proposta prevista no programa. Como era ainda algo muito tímido, que dependia de políticas voltadas ao setor, os atendimentos se tornaram muito pontuais. O objetivo era ampliar o trabalho e atender uma demanda que exigia melhor atenção.
Delegado Sandro Moura
Finalmente, após muita discussão, reuniões e debates foi criado em 01 de março deste ano, o Provita, Núcleo de Valorização do Servidor Policial Civil do Estado de Rondônia. O órgão está ligado diretamente à Divisão de Recursos Humanos da Polícia Civil que é quem acompanha de forma pontual cada servidor da PC.
O Núcleo atuará de forma direta na atenção psicossocial, saúde, segurança do trabalho e valorização pessoal. O trabalho será coordenado pelo delegado Sandro Moura que já vem há algum tempo se dedicando ao assunto.
Sandro estabeleceu as diretrizes do Núcleo e esteve no Ministério da Justiça, em Brasília, buscando apoio, recursos e definindo estratégias de parcerias que deverão ser implantadas em Rondônia. “ Já ganhamos do Ministério da Justiça uma viatura para o Núcleo, agora teremos que criar projetos e ações para poder receber dinheiro que garanta a manutenção do trabalho”, afirma o delegado.
Sandro Moura aproveitou a reportagem para avisar aos policiais civis que eles já podem procurar o Núcleo caso necessitem de ajuda. O telefone de contato via WhatsApp é 69 98484.2091. O delegado explica ainda, que já foi mandado no e-mail que os policiais fizeram recadastramento na PC, os serviços oferecidos pelo novo Núcleo.
Sandro enfatiza que ás vezes o policial sofre um acidente em serviço, por exemplo, e pode precisar de prótese ou custeio de material ortopédico ou fisioterapia.
Recursos oriundos do Núcleo serão usados para atender essas necessidades. A Polícia Civil de Rondônia tem 1.758 servidores na ativa e pouco mais de 1000 aposentados. O novo serviço prevê atendimento à todos, incluindo dependentes.