A história do lugar onde foi construído o Forte Príncipe da Beira, em Costa Marques, estado de Rondônia, é muito antiga. Milênios antes da chegada dos impérios ibéricos, povos indígenas já ocupavam o vale do rio Guaporé com densidade e prosperidade impressionantes.
Foi justamente essa presença indígena significativa que mobilizou Portugal e Espanha a enviarem expedições, estabelecerem missões e, por fim, por questões de disputa, edificarem fortalezas e outros tipos de construções militares, na tentativa de consolidar o domínio sobre o território.
Muito antes de se pensar em um forte, já havia ali um mundo construído por povos originários, suas redes de troca, espiritualidade e modos de vida. Foi sobre esse mundo que os conquistadores lançaram fundações de igrejas, fazendas, cidades e fortalezas.
Missões espanholas como Santa Rosa (1742) e San Miguel (1744), e São José (1750), bem como os núcleos portugueses como Leomil e Lamego (1760), surgem em meio a essa disputa, mas é com o lançamento da pedra fundamental do Forte Príncipe da Beira em 1776 que a Coroa Portuguesa consagra simbolicamente a sua presença imperial no extremo oeste.
Hoje, o Forte resiste. Gigantesco, imponente, lendário — mas também isolado, malconservado e desconhecido por muitos. É um paradoxo, pois em Rondônia, ele está presente nas representações iconográficas de brasões oficiais de municípios, brasões como o da Policia Militar, logotipos de sindicatos, federações esportivas e também em discursos oficiais.
Entretanto, Elvis sempre chamou atenção pela ausência do mesmo zelo e orgulho nas políticas públicas de valorização, educação e cuidado e conservação do monumento. É como se fosse uma memória prestigiada, mas esquecida na prática. Amada, mas não compreendida.
Foi nesse paradoxo entre grandiosidade e abandono que Elvis atuou. No dia 24 de abril de 2023, perdemos Elvis Cayaduro Pesoa (1977 – 2023), uma das vozes mais potentes e generosas da luta quilombola na Amazônia. Somente depois de dois anos que tive força para cumprir com o dever de produzir a memória desta pessoa que ensinou muito. Emergido em revolta é que escrevo este depoimento.
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Elvis foi um pesquisador popular, guardião da memória, lutador de direitos, foi presidente por consecutivos mandatos da Associação de Moradores Quilombolas do Forte Príncipe da Beira (Asqforte). Seu nome era consenso, tinha uma comunidade que o apoiava e uma família que o amava. Foi um dos principais defensores da comunidade quilombola que vive à sombra do velho forte colonial — uma comunidade que há gerações resiste, trabalha e cuida da história do país onde ela começou: o Brasil profundo, indígena e negro.
Sempre considerei Elvis não apenas como arqueólogo, mas como ponte entre o passado e o presente, entre as rochas talhadas e o povo. Ele escutava o Forte, lia o seu território — com método, com ética e com afeto. Mais do que decifrar estruturas ou classificar objetos, ele se importava com as histórias que os lugares contam e com as pessoas que ainda vivem essas histórias.
Elvis fez da arqueologia um compromisso ético com a memória e com a justiça. Sua luta não era apenas pela preservação do patrimônio material, mas pelo reconhecimento dos sujeitos históricos invisibilizados — indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses. Foi através desse olhar que ele reconstruiu sentidos, fortaleceu resistências e denunciou ausências.
Sua morte mobilizou uma série de instituições, como o Ministério Público Federal em Rondônia, a Universidade Federal de Rondônia (UNIR), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o ICOMOS Brasil (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) — que prestaram homenagens públicas, reconhecendo sua trajetória como liderança quilombola e defensor incansável do patrimônio histórico e cultural da Amazônia.
Essas manifestações, vindas de órgãos ligados à pesquisa, ao Estado e à proteção do patrimônio, mostram o impacto profundo de sua atuação — uma vida dedicada à terra, à memória e ao povo.
Elvis não morreu por acaso. Sua morte é uma ferida aberta que revela a brutal desigualdade no acesso à saúde que atinge as comunidades quilombolas. Faleceu por conta de uma condição simples, que qualquer hospital com estrutura poderia ter resolvido.
Mas o cuidado que sempre defendeu para seu povo lhe foi negado. Elvis passou a vida cobrando políticas públicas, exigindo atenção básica, lutando para que a saúde fosse um direito real — e, no fim, foi justamente essa negligência histórica que lhe tirou a vida.
Elvis foi um pesquisador popular incansável, que dedicou sua vida a localizar, estudar e proteger mais de 20 sítios arqueológicos no seu território — vestígios da presença ancestral indígena e negra na formação da Amazônia. Ele os lia e os compreendia com o corpo e com o coração.
Criou mapas mentais profundos, combinando trilhas, memórias e fragmentos de objetos, com a escuta dos mais velhos. Sabia onde estavam as histórias, mesmo que elas ainda não tivessem sido reconhecidas oficialmente. E hoje, algo que não surpreende nem um pouco, sabemos que ele estava certo.
O projeto Amazônia Revelada, com imagens geradas por tecnologia LIDAR, confirmou aquilo que Elvis já sabia de antemão. As imagens aéreas mostraram estruturas enterradas, caminhos, ocupações antigas — revelando que o território quilombola possui uma história muito maior do que muitos imaginavam ou queriam admitir. Agora, com apoio da UNIR e de pesquisadores parceiros, foi iniciado um projeto de arqueologia que une o conhecimento tradicional quilombola com os saberes acadêmicos, em um verdadeiro encontro de saberes. É ciência com raízes, é território com voz.
E foi Elvis quem abriu esse caminho. Seus esforços ajudaram — e continuarão ajudando — na proteção do território quilombola, pois os sítios arqueológicos brasileiros são protegidos por lei (Lei nº 3.924/61). A ciência que ele fez, de início com pés descalços e olhar atento, é hoje instrumento jurídico de defesa do território, uma prova concreta contra o avanço do esquecimento e da destruição.
Elvis formou gerações. Treinou com cuidado e sabedoria dois jovens que hoje seguem com brilho próprio: Angel Pesoa e Santiago Pesoa, seus irmãos de luta, hoje protagonistas na pesquisa, na conservação e na divulgação científica. Com eles, Elvis plantou o futuro. Porque Elvis não foi apenas pesquisador e conservador. Foi também divulgador científico — uma tarefa vital, especialmente em tempos de desinformação.
Com paciência e firmeza, refutava os lunáticos e oportunistas que rondam seu território espalhando absurdos como a falsa ideia de “Ratanabá” e outras teorias coloniais fantasiadas de ficção e armadas de maldade. Elvis mostrava que o verdadeiro mistério da Amazônia está na sua história viva e silenciada, feita por povos que resistem, constroem e cuidam.
Articulador
Foi também um grande articulador: dialogou com o IPHAN, com o governo estadual, com a prefeitura, com universidades — sempre tentando garantir respeito, reconhecimento e reparação à sua comunidade. Muitas vezes não foi escutado como deveria, mas mesmo assim seguiu em frente, com coragem e convicção.
O ano de 2023 foi um ano de luto e vitória para a Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira. Em meio à dor de perder Elvis, a comunidade viu também o reconhecimento oficial de seu território. Em julho, o INCRA publicou o edital de identificação e delimitação da área quilombola — conquista coletiva, mas também fruto da sua persistência e articulação.
Na terra demarcada, nos sítios arqueológicos, nas crianças que crescem ouvindo sua história, nas pessoas quilombolas que resistem no Forte, Elvis Cayaduro Pesoa foi — e seguirá sendo — guardião da memória e defensor do território.
Portanto, agora, quando se fala do Forte, não há como não lembrar de Elvis. Porque seu trabalho deixou marcas, sua voz ecoa em cada debate sobre patrimônio, e seu legado nos convoca a cuidar daquilo que somos — mesmo quando nos dizem que é que todas história hoje é apenas ruína.
Elvis nos ensinou que o Forte Príncipe da Beira e os sítios arqueológicos nos arredores não somente rochas empilhadas: são histórias vivas, e que a arqueologia não é só escavação: é escuta, é presença, é luta.
Sua voz segue e seguirá sempre viva. Sua ausência se transforma em força.
Elvis não morreu!
Elvis presente! Hoje e sempre!
Carlos A. Zimpel, Departamento de Arqueologia da UNIR, Porto Velho